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"Quem saiu mais forte após as primárias democratas foi Trump"
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"Quem saiu mais forte após as primárias democratas foi Trump"

Especialista avalia que divisão democrata nas primeiras prévias beneficia presidente
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Carlos Gustavo Poggio (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Carlos Gustavo Poggio

Com um sistema de votação complexo, principalmente para quem vê de fora, ter a maioria dos votos populares não significa necessariamente ser escolhido por um partido para a disputa presidencial nos Estados Unidos, marcada para novembro. Pelo lado republicano, vários estados têm Donald Trump como candidato certo a reeleição. Já os democratas vivem as primárias mais conturbadas e fragmentadas dos últimos anos, não estando claro quem desponta na corrida pela Casa Branca. Professor da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), doutor em relações internacionais e especialista em política estadunidense, Carlos Gustavo Poggio avalia que as indefinições no Partido Democrata e o problema na contagem dos votos no caucus de Iowa tiveram justamente Donald Trump como principal favorecido.

O POVO - Quais são as especificidades das prévias eleitorais nos Estados Unidos?

Carlos Gustavo Poggio - Trata-se basicamente de um processo de seleção dos candidatos de cada partido. No Brasil, a cúpula dos partidos seleciona seus candidatos e os apresenta para a disputa. Nos EUA funcionava mais ou menos assim até o início dos anos 1970, quando foram feitas reformas para permitir aos filiados dos partidos selecionar os candidatos que disputarão as eleições. Então, antes das convenções dos partidos, temos as primárias. Cada partido tem suas regras, mas de forma geral funciona de forma similar às eleições gerais, com votação por Estado e com cada Estado representando um número determinado de delegados baseados na população. A diferença importante é que as eleições gerais ocorrem num mesmo dia em todos os Estados, ao passo que as primárias ocorrem de forma sequencial ao longo de diversos meses. Isso significa que os resultados das primárias em um Estado que vota antes podem afetar os cálculos dos eleitores de Estados que votam depois.

OP - O eleitor dos Estados Unidos entende de maneira clara esse sistema eleitoral, tão complexo para nós?

Poggio - Essa pergunta é difícil de responder porque deveria ser embasada em dados consolidados, mas o que eu posso dizer é que sim, existe uma compreensão por parte da população de como funciona o sistema. Por que? Porque eles cresceram nesse sistema, ele está presente desde a fundação do país, está presente na Constituição. Para nós pode parece estranho, mas para o estadunidense há uma noção maior do peso e da independência de cada estado. Claro que não é um sistema que agrada todo mundo, a prova disso é que existem propostas no Congresso de que o voto seja direto. Para os democratas interessa mais que o voto seja direto, porque em termos populacionais há mais gente disposta a votar neles. Já os republicanos são contra, porque entendem que o sistema atual os beneficia. Só que para alterar essa questão, é bastante complicado porque depende do Congresso e precisa ser feita uma emenda à Constituição. Na história do país, nós temos pouco mais de 25 emendas em 230 anos.

OP - Qual a quantidade necessária de delegados para se eleger presidente?

Poggio - O total de votos no colégio eleitoral é igual a quantidade de deputados (435) mais a de Senadores (100) no Congresso, ou seja, 535. Desde a aprovação da 23ª emenda constitucional em 1961, o Distrito de Columbia (que não tem representantes no Congresso) tem direito a três votos eleitorais. Portanto o total é 538. Um presidente precisa de mais da metade desses votos para ser eleito, ou seja, 270. Cada Estado tem o numero de votos eleitorais correspondente ao número de deputados (que varia de acordo com a população) mais o número de senadores (dois por Estado) que possui.

OP - Quais as preferências históricas dos estados?

Poggio - Até meados dos anos 1960, estados do Sul em geral eram mais democratas e os do norte mais republicanos. Estados que hoje associamos aos republicanos, como o Texas, votaram diversas vezes em candidatos democratas. E estados que hoje associamos aos democratas, como Nova Iorque, votaram em republicanos. Os republicanos (Ronald) Reagan e (Richard) Nixon fizeram carreira na Califórnia. Os democratas (Lyndon) Johnson e (Jimmy) Carter fizeram carreira no Texas e na Geórgia, respectivamente. As razões dessa mudança são relativamente complexas e se devem a uma série de processos históricos. A luta dos direitos civis nos anos 1960 foi fator fundamental para esse realinhamento.

OP - O resultado democrata em New Hampshire, com vitória de Bernie Sanders, pode indicar uma tendência para o restante das primárias?

Poggio - Normalmente, depois que temos esses dois estados (Iowa e New Hampshire) há condições de apontar potenciais tendências, mas neste ano o cenário continua muito fragmentado. Estatísticos já estão calculando as chances de que nenhum dos candidatos consiga o número de delegados necessário para ser escolhido antes das convenções. Seria algo inédito, porque percebendo que há possibilidade disso acontecer, os candidatos tendem a fazer um acordo. Então é possível que haja um acordo prévio, mas neste ano particularmente está muito diferente dos anos passados, temos cinco ou seis bons nomes que seguem na disputa.

OP - Joe Biden teve, até aqui, um desempenho abaixo do esperado. Ele é considerado o candidato do establishment dentro do partido. Isso também pode ser considerado uma tendência?

Poggio - Eu acho que a principal questão que saiu de Iowa e New Hampshire foi a queda do Biden. A grande história é essa, porque ele vinha liderando as pesquisas desde o ano passado e aí se viu com um desempenho bem aquém do esperado nesses dois estados. Na primeira pesquisa nacional pós-New Hampshire, Biden teve uma queda em termos nacionais, enquanto Sanders registrou aumento. Biden tem perdido o apoio dos mais velhos e dos negros. Curiosamente esses dois setores estão migrando para o (Michael) Bloomberg. O principal argumento do Biden, e de quem vota nele, e isso as pesquisas mostravam, é porque as pessoas viam nele o candidato democrata mais provável de vencer Donald Trump numa eventual eleição. Todo argumento da candidatura dele era esse. Pois veja bem, quando Bidden tem desempenho muito ruim nos primeiros estados, esse argumento começa a ser questionado. Hoje, com a nova pesquisa, a gente vê que ele já não é o mais bem visto para vencer Trump.

OP - Pete Buttigieg era tido como um azarão no Partido Democrata antes da vitória em Iowa. Ainda é possível considerá-lo assim?

Poggio - Acho que sim, as chances dele receber a nomeação são pequenas, mas aumentaram. Apesar do aumento significativo, ele continua como azarão porque a longo prazo as chances são muito poucas. O caminho do Pete para nomeação é muito complicado porque depende de uma combinação de fatores. Ele tem uma dificuldade muito grande de penetração no eleitorado negro. Se bobear, o Trump tem mais apoio de negros do que ele. E aí teremos as prévias em Nevada onde há um contingente grande de latinos e também na Carolina do Sul, onde o eleitorado negro tem um peso significativo. É aí que Buttigieg deverá ter dificuldades. Por outro lado Biden está apostando tudo na Carolina do Sul.

OP - O caucus de Iowa foi cercado de polêmica em virtude de problemas envolvendo contagem de votos. Quão desgastado está o Partido Democrata após Iowa?

Poggio - A imagem democrata desgastou consideravelmente e o que ocorreu foi um desastre completo para o partido. A 1ª primária e você registra uma confusão homérica e extremamente constrangedora. Evidentemente, o Trump atacou essa questão porque vinha de uma semana muito boa, na qual foi absolvido do processo de impeachment. Isso mudou até o clima da campanha democrata. Estados mostram que as últimas semanas foram bastante positivas para Trump, que chegou a medir o ponto mais alto de sua popularidade desde que iniciou o governo. Eu digo que quem saiu mais forte após Iowa não foram Buttigieg e Sanders, foi Trump.

OP - Após os primeiros resultados é possível considerar Donald Trump como "unanimidade" entre os republicanos?

Poggio - Não era surpresa que ele ganharia. É normal que o presidente eleito ganhe. É fato que Trump ganharia com porcentagens maiores do que quando estava na primeira disputa. É fato que ele têm um apoio massivo dentro do partido. Nós vemos uma certa união dentro do partido republicano. Enquanto os democratas estão se degladiando para escolher um nome, em especial neste ano atípico onde vários candidatos seguem com chances, o Trump está fazendo campanha. O tempo de campanha democrata será bem menor e essa é uma das questões pela qual o presidente eleito costuma alcançar a reeleição.

OP - Quais estados que você destacaria como possivelmente decisivos nas próximas primárias?

Poggio - O estado mais decisivo agora no curto prazo, não pelo número de delegados, mas pelo simbolismo é Carolina do Sul. Se o Biden não ganha lá, termina a campanha dele. Fora isso, teremos Nevada com um caucus importante. A situação geral hoje é muito ruim para o Biden, ele está com um sangramento significativo de eleitores. Se ele não fizer nada que melhore sua imagem nas próximas duas semanas ele perderá na Carolina do Sul.

OP - O que Biden pode fazer para reverter o cenário?

Poggio - Aí você teria que perguntar para a pessoa responsável pela estratégia de campanha dele, mas posso te dizer que é uma questão de organização interna. Se eu soubesse o que o Biden deveria fazer, venderia a solução para ele (risos).

OP - E entre as mulheres há chances de vitória feminina?

Poggio - Elizabeth Warren estava muito forte nas pesquisas, mas claramente registrou maus resultados nas duas primeiras prévias. Em contrapartida, temos a senadora de Minnesota Amy Klobuchar, que vinha com pontuação insignificante e depois de New Hampshire ganhou um novo olhar de algumas pessoas. Ainda assim, seria uma surpresa se ela conseguisse se consolidar.

OP - Na Super-Terça, prevista para o início de março, teremos os nomes de ambos os partidos definidos?

Poggio - Normalmente é o que acontece. Após a Super-Terça sabemos quem são os candidatos mais viáveis. Entretanto, dada a natureza fragmentada das parciais deste ano, é possível que essa incerteza permaneça. Mas se houver um ou dois nomes mais fortes até lá, é possível que a definição aconteça. O Bloomberg, por exemplo, já há pesquisas que o colocam em terceiro lugar. Mas a questão dele é se isso será suficiente para ele vencer ou se apenas serviria para atrapalhar o Biden, o que favorece o Sanders. Agora digamos que ele desista, os eleitores do Bloomberg são mais moderados, então se ele desistisse é provável que a migração favoreceria o Biden.

 

Calendário

Nos próximos dois sábados, o Partido Democrata realiza um caucus em Nevada (22/2) e na Carolina do Sul (29/2)

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