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O fim da segurança pública
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

O fim da segurança pública

Em junho de 2018, foi criado o Sistema Único da Segurança Pública (SUSP), também conhecido como o "SUS da Segurança", que permite uma atuação conjunta, sistêmica e integrada da União, estados, municípios e sociedade. Trata-se de uma ferramenta de gestão bastante avançada que, se usada de forma estratégica, pode revolucionar o modo como os órgãos de segurança pública atuam, conferindo maior agilidade a atividades como investigação, inteligência , prevenção e resolução pacífica dos conflitos.

Com o SUSP, ações como a transferência de tecnologia entre a PRF e o Governo do Estado na área de videomonitoramento e o projeto-piloto do Ministério da Justiça e Segurança Pública - que visa ao combate à criminalidade violenta - podem se integrar à rotina das instituições, que passariam a operar de maneira mais orgânica.

Para que o sistema funcione de forma plena, contudo, cabe ao Governo federal estabelecer a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), cujos princípios, diretrizes e objetivos foram definidos pela Lei nº 13.675/18. Quase um ano se passou e pouco foi feito nesse sentido. Uma das principais críticas é a falta de definição sobre de onde virão os recursos para as ações previstas.

O aspecto que mais preocupa, no entanto, é que o próprio conceito no qual o SUSP se fundamenta encontra-se em risco. No artigo 2º da legislação federal afirma-se que "a segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos, compreendendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Munícipios, no âmbito das competências e atribuições legais de cada um". O texto atualiza o artigo 144 da Constituição Federal que afirma ser a segurança pública um "dever do Estado, direito e responsabilidade de todos".

O conjunto de medidas do Governo Bolsonaro que flexibilizam e contribuem para maior disseminação de armas de fogo entre a população vai contra a ideia de que a segurança pública é um dever do Estado ao terceirizar, na prática, aos próprios indivíduos a responsabilidade sobre sua proteção. Inspirada em sociedades que contam com um padrão de vida e uma cultura comunitária mais avançados, a liberação do uso de armamentos no Brasil só irá nos colocar no modo "salve-se quem puder", ou seja, em uma espécie de Freefire (jogo online em que o vencedor é o único que resta vivo em um tiroteio de todos contra todos) da vida real.

Nesse cenário hobbesiano, quem tiver mais recursos leva imensa vantagem em relação às pessoas que já sofrem com as mais diversas vulnerabilidades. Quem é que poderá abrir mão do salário apertado para comprar uma pistola de R$ 4 mil? Quantos dos 13,4 milhões de desempregados poderão circular pelas ruas armados, fazendo sua própria segurança? Ainda assim o mercado (legal e ilegal) de armas de fogo assistirá a um crescimento vertiginoso diante da chegada de armas importadas a preços mais acessíveis. Um efeito colateral da terceirização da segurança é o fortalecimento das milícias e dos grupos de extermínio, haja vista que o controle sobre a circulação de armamentos tenderá a se afrouxar ainda mais sem instrumentos legais que sirvam de contrapeso à liberação.

Os profissionais da área de segurança deveriam ser os primeiros a se posicionar de forma contrária a essa medida. O aumento na quantidade de pessoas armadas só irá aumentar a sensação de insegurança, uma vez que não há indicação de reforços no policiamento ou de qualquer melhoria que seja no sistema de justiça criminal. As condições de trabalho dos policiais ainda passam longe do ideal mesmo que eles venham a usufruir do excludente de ilicitude, enquanto os processos penais tramitam em uma velocidade muito lenta para atender uma demanda descomunal. Distribuir armas de fogo impunemente não irá resolver esses dois graves problemas.

A ideia de uma "segurança pública" como um direito do cidadão garantido pelo Estado é recente. Remonta à Constituição de 1988. Nesses pouco mais de 30 anos, a sociedade brasileira e a classe política pouco avançaram em fazer com que esse direito saísse do papel e se tornasse verdadeiramente efetivo. O SUSP reúne em si a possibilidade de que isso possa vir a acontecer, mas o sistema precisa estar no centro do debate sobre criminalidade e violência. A possibilidade de que voltemos a um período em que a segurança se resumia à caça de pessoas indesejáveis (e nem sempre criminosas) não pode ser descartada. Seria o fim do conceito de segurança pública como conhecemos e o início de um regime de apartheid social baseado em quem atira primeiro (e quem possui o melhor advogado).

 

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