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Presos no Ceará "compram" contas bancárias para uso em golpes telefônicos
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Presos no Ceará "compram" contas bancárias para uso em golpes telefônicos

| CRIME | Promotores descobriram esquema ao apreender anotações com senhas e números de contas e cartões, durante vistorias em cadeias
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Detentos de unidades prisionais do Ceará pagavam entre R$ 100 e R$ 200 para "comprar" ou "alugar" contas bancárias de terceiros. Elas movimentavam o dinheiro do crime praticado de dentro da cadeia, segundo investigações em andamento, conduzidas pelo Núcleo de Investigação Criminal (Nuinc), do Ministério Público Estadual (MPCE). As contas guardaram quantias obtidas em crimes cometidos por telefone, como os falsos sequestros ou a venda fictícia de veículos por aplicativos. Também serviram para receber depósitos das mensalidades pagas por membros das facções criminosas.

O valor de cada conta adquirida dependia do limite autorizado pelo banco para as transações de saque - até R$ 3 mil, segundo a Caixa Econômica. Chegavam a movimentar até R$ 20 mil semanalmente num mesmo nome. Contas com permissão ilimitada valiam mais, eram as mais procuradas pelos presidiários golpistas.

A maioria dos cadastros usados pelos presos era da Caixa Econômica Federal, segundo os promotores de justiça Humberto Ibiapina e Francisco Gomes Câmara, do Nuinc. Ibiapina confirma que há cadastros vendidos ou emprestados de outros bancos. Os promotores indicam que a facilidade de abertura de contas em agências lotéricas era o que atraía os "vendedores".

A fraude foi descoberta com a análise de material apreendido nas celas de penitenciárias locais, durante vistorias coordenadas pelo MPCE. Foram pelo menos sete operações de inspeção extraordinária, entre 2017 e 2018. Nas celas, entre celulares, chips, drogas e armas artesanais recolhidas também havia anotações dos traficantes presos. Foi nesses papéis que apareceram numerações referentes a dados bancários e informações sobre a movimentação financeira feita do lado de fora do presídio.

 Depois da compra ou aluguel, os cartões, números de agência e conta e as senhas eram utilizadas por gente da confiança dos detentos. Como suas companheiras, parentes ou "irmãos" definidos pela facção. A quantia repassada por quem caía nos golpes virtuais ia direto para essas contas. Depois, os criminosos agiam para que os valores migrassem o quanto antes para outras contas quentes. O repasse era em quantias diluídas, para dificultar possíveis rastreamentos. O dinheiro financia mais crimes como tráfico de drogas, compra de armas e é lavado na compra de bens e imóveis.

Há três procedimentos investigatórios criminais (PICs) em andamento no MPCE, conduzidos pelo Nuinc. O POVO teve acesso ao teor de um deles. Apenas numa das apurações há 15 contas vinculadas a um mesmo detento. Não foram apontados valores das transações fraudulentas, nas contas examinadas. Ainda não se sabe o total de contas acionadas pelo esquema. Nenhum nome de investigado dentro ou fora dos presídios foi revelado.

Os promotores apontam pelo menos dois crimes cometidos: estelionato e associação criminosa. Penas de um a cinco anos e um a três anos, respectivamente. Quem vendeu ou alugou seu dado bancário pode ser imputado na mesma acusação. No caso do detento, a sanção administrativa pode aumentar o tempo de cadeia. Apesar da inspeção feita na Cadeia Pública de Icapuí, em setembro do ano passado, a apuração do Nuinc está relacionada somente ao que foi encontrado em seis unidades prisionais da Região Metropolitana de Fortaleza.

Nenhum dos casos, segundo os promotores, é referente a 2019, quando o sistema penitenciário cearense adotou novas regras disciplinares, mais rígidas, para os detentos, funcionários e visitantes. As promotoras Ana Alzira Bossard e Luciana Aquino, do Nuinc, também estão à frente da investigação.

Caso ajudou a entender a metodologia da fraude

Uma oitava operação do MPCE, a Laranjas, deflagrada em maio deste ano, foi uma das mais importantes no cenário investigado. Nem teve celas inspecionadas. A estratégia usada foi a checagem de pessoas próximas ao estelionatário Cláudio Aritana Lopes Santos. Ele esteve preso no Ceará desde 2002, mas fugiu do sistema penitenciário local em 2017, quando recebeu um livramento condicional e não se reapresentou. Foi recapturado em São Paulo, no mesmo ano, já comandando em liberdade a rede de golpes por telefone. Era o mesmo que fazia ainda dentro da cadeia.

O esquema de Aritana para lavar o dinheiro ajudou a entender a metodologia da fraude. Ele acionava a participação de quatro namoradas, que teriam emprestado suas contas. Pelos feitos, Aritana ganhou os apelidos de "Don Juan" e "O dono da cadeia". Conseguia atrair suas conquistas amorosas como "laranjas" dos valores obtidos em crimes por telefone.

Através delas, adquiria patrimônio e, enquanto cumpria pena, mantinha um "comércio" dentro da unidade prisional. Comprou imóveis, veículos e até uma agência lotérica. Na investigação, surgiram indícios de que os dados bancários de terceiros já eram usados por ele antes de 2017. (Cláudio Ribeiro)

Vistorias Nos Presídios

Vistorias nos presídios cearenses, realizadas entre 2017 e 2018, que ajudaram a descobrir a "compra" de contas bancárias pelos presos:

Operação Prisioneiras

Data: 21/9/2017.

Local: Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa(IPF).

> Na inspeção extraordinária foram encontrados 114 celulares, chips, carregadores, baterias e pendrives, documentos da contabilidade do tráfico de drogas, embalagens de cocaína e maconha para revenda. Agentes penitenciários e policiais militares participaram de todas as revistas.

Operação Andréas

Data: 10/11/2017.

Local: Penitenciária Francisco Hélio Viana de Araújo (IPFHVA), em Pacatuba.

> Na vistoria foram encontradas uma pistola PT 638 calibre 380, com 64 munições do mesmo calibre e carregadores, facas artesanais (cossocos) e 81 celulares. Também foram recolhidas balanças artesanais para pesagem de drogas, documentos da contabilidade do tráfico, papelotes de cocaína e troças de maconha.

Operação Fronha

Data: 24/11/2017

Local: Centro de Execução Penal e Integração Social (Cepis) Vasco Damasceno Weyne, conhecido como CPPL 5, em Itaitinga.

> Descobertos papéis da contabilidade do tráfico e valores obtidos em golpes por telefone. Foram tomados 116 celulares, 61 chips, fones de ouvido e carregadores, embalagens de maconha e cocaína. O nome foi referência a um possível esconderijo do material encontrado.

Operação Tapa-Buraco

Data: 26/4/2018.

Local: Casa de Privação Provisória de Liberdade (CPPL) 3, em Itaitinga.

> Foram descobertos 63 celulares e 79 chips, carregadores, cocaína, maconha, crack, cossocos e anotações sobre a venda de drogas. Além de apreensões, a operação tentava localizar túneis na unidade, por isso o nome escolhido para a operação.

Operação Manzuá

Data:20/9/2018

Local: Cadeia Pública de Icapuí.

> Foram apreendidos 14 celulares, entre os 44 detentos que estavam na unidade (quase um terço). Um dos aparelhos foi destruído por um detento membro de facção criminosa no momento da apreensão. Também havia três pendrives, chips e drogas. Manzuá é a armadilha usada por pescadores para a captura da lagosta, comum no mar de Icapuí.

Operação Ligações Clandestinas

Data: 25/9/2018

Local: Unidade Penitenciária Professor Sobreira de Amorim (CPPL 7), em Itaitinga.

> Durante a inspeção foram encontrados 20 smartphones, 12 celulares e drogas. Também havia anotações sobre venda de drogas e relativas a golpes através dos celulares. O nome é relação direta com o uso de celulares pelos internos da unidade.

Operação Olavo Doce

Data: 1º/11/2018

Local: Instituto Penal Professor Olavo Oliveira (IPPOO 2), em Itaitinga.

> Inspeção nas 116 celas nas 12 alas da unidades encontrou 174 celulares. Dois desses aparelhos eram no formato micro, menores e mais finos que o dedo de uma mão adulta. Também foram achadas anotações sobre a venda de drogas e golpes aplicados de dentro das celas. Foi a última operação, antes do controle das unidades prisionais locais passar por reformulação. O nome da operação é o apelido dado pelos presos à unidade carcerária, pela facilidade que mantinham em seus crimes.

Operação Laranjas

Data: 17/5/2019

Local: Fortaleza, Quixadá e São Paulo.

> Mesmo preso na CPPL 5, em Itaitinga, Cláudio Aritana Lopes Santos chefiava rede de golpes pelo celular, em ligações de dentro da unidade. Era chamado de "dono da cadeia" . Chegou a movimentar mais de R$ 4 milhões em um ano e meio, com a compra de agência lotérica, dez residências e dois veículos, além de gerenciar a venda de celulares. Aritana acionava "laranjas" do lado de fora, quatro ex-companheiras suas, que emprestavam as contas bancárias para a movimentação. Havia entrado no sistema penitenciário cearense em 2002 por crimes de estupro, estelionato e extorsão. Fugiu em 2017, durante livramento condicional. Voltou a ser preso em São Paulo, após cometer novos crimes. A investigação do MPCE desmontou o esquema de lavagem de dinheiro.

Fonte: Ministério Público Estadual (MPCE)

Caixa diz que segue regras do BC

A Caixa Econômica Federal informou ao O POVO Online que segue as regras do Banco Central, quanto às exigências para abertura e manutenção de contas. São necessários documento de identidade com foto, número de inscrição do Cadastro de Pessoa Física (CPF) e comprovante atualizado de residência. No golpe das contas compradas por detentos, a investigação do Ministério Público Estadual constatou que a maioria dos novos cadastros é feita em agências lotéricas.

"O processo de abertura de conta nas unidades lotéricas ou correspondentes bancários tem características diferentes daquele realizado nas agências. No entanto, os critérios são os mesmos para os dois canais", informa a nota da Caixa enviada ao portal.

Questionado sobre os critérios para contas limitadas ou ilimitadas, o banco informa que a conta convencional de depósitos regida pela Resolução Bacen 2025 "é de livre movimentação e possui acesso a todos os produtos e serviços da Caixa. Já as contas especiais, modalidade Fácil, são regidas pela Resolução Bacen 3211 e possuem limite de saldo e movimentação mensal de R$ 3 mil".

"A Caixa tem feito vários investimentos em TI (Tecnologia da Informação) voltados para segurança da informação com a finalidade de disponibilizar aos seus clientes recursos de acesso atualizados, seguros e alinhados com o mercado", acrescenta a nota.

Anotações nas marmitas avisavam sobre números das contas

Durante a vistoria das celas, os promotores, agentes penitenciários e policiais se preocupavam com o que pudesse estar debaixo de colchões, entre as roupas, pertences ou em locais mais comuns para os presos esconderem objetos. Procuravam celulares, drogas, armas e indícios de ilícitos. De repente, passaram a perceber numerações anotadas nas tampas das marmitas distribuídas aos detentos. Não souberam identificar de início, até surgir a pista do que seriam. Eram os dados de agência, conta e senha dos cadastros bancários "vendidos" do lado de fora da cadeia.

Com aqueles números, os golpistas indicavam às vítimas onde poderiam ser feitos os depósitos. "Achamos um monte dessas contas nas tampas das marmitas", confirma o promotor Humberto Ibiapina, do Núcleo de Investigação Criminal do Ministério Público Estadual (Nuinc/MPCE). Segundo o depoimento de um dos presos, colhido pelos promotores após as apreensões, a orientação dada a quem venderia a conta era ir até uma agência lotérica e pedir a "operação 013".

Este é o código do sistema da Caixa Econômica usado para a abertura de conta mais simples, bastando apresentar CPF, documento de identidade com foto e comprovante de endereço. Geralmente são contas limitadas a R$ 3 mil de saque. Por elas, os presos pagam R$ 100. Contas compradas com valores ilimitados, abertas numa agência bancária, valiam mais para o preso - até R$ 200. Porque permitiam movimentações maiores.

Outra curiosidade encontrada numa das celas foi uma lista de nomes (apelidos) escrita na parede. É um outro braço da investigação. Os promotores do Nuinc também rastreiam o caminho do dinheiro das mensalidades dos membros das facções. Os nomes na parede eram dos devedores do pagamento mensal, monitorado de dentro das celas. O valor por faccionado, em média, é de R$ 50/mês. (Cláudio Ribeiro e Igor Cavalcante)

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