Logo O POVO+
Filmado em Russas, Pacarrete conquista Gramado
CIDADES

Filmado em Russas, Pacarrete conquista Gramado

Longa cearense Pacarrete, de Allan Deberton, foi o grande vencedor do Festival de Gramado, levando oito prêmios. Obra é inspirada em uma história real
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
 (Foto: divulgação)
Foto: divulgação

"Um artista nunca deve deixar os palcos", diz-se no trailer do longa cearense Pacarrete. Dirigido por Allan Deberton e protagonizado pela atriz paraibana Marcélia Cartaxo - reconhecida internacionalmente pelo papel de Macabéa na adaptação aos cinemas do romance A Hora da Estrela, de Clarice Lispector - o filme marcado pelo tema de resistência artística levou oito prêmios na noite do sábado, 24, na 47ª edição do Festival de Gramado. A obra se inspira na história real da bailarina clássica Maria Araújo Lima, conhecida por Pacarrete, considerada "louca" por muitos do município.

Em Gramado, a obra levou os troféus de Melhor Filme, Melhor Filme pelo júri popular, Melhor Atriz (Marcélia Cartaxo), Melhor Atriz Coadjuvante (Soia Lira), Melhor Ator Coadjuvante (João Miguel), Melhor Direção (Allan Deberton), Melhor Roteiro (Allan Deberton, Natália Maia, Samuel Brasileiro e André Araújo) e Melhor Desenho de Som. Na estreia, no dia 20, foi ovacionado pelo público. A expectativa de estreia comercial, segundo o diretor, é para o início de 2020, após passagem pelo circuito de festivais.

"A gente estava ansioso pela recepção do público. Eu e a equipe sabíamos que o filme era forte, importante para nós, mas a gente não tinha tido experiência de contato com público na nossa terra", reconta Allan, em entrevista ao O POVO. Antes de estrear na cidade gaúcha, o filme foi selecionado para o Festival de Xangai. "(Em Gramado) Foi bastante caloroso. Nos créditos, as pessoas aplaudiram e a gente demorou a conseguir sair da sala. Quando saímos, tinha mais pessoas esperando pelo elenco para poder aplaudir o trabalho deles. A gente ficou meio atônito, querendo entender, felizes, realizados", lista. A próxima parada do longa é em casa, no Cine Ceará, onde haverá exibição especial no encerramento, na sexta, 6. "A expectativa é muito grande porque é a estreia com a equipe local, com muita gente de Russas. Há muita curiosidade de como vai ser recebido o filme e muita felicidade porque vamos estar com a equipe", celebra.

A aclamação de Pacarrete em Gramado se conecta a questões relacionadas às políticas do audiovisual. Além da temática apontar para a resistência da arte, Allan é produtor de Transversais, uma das obras criticadas nominalmente pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) há pouco mais de uma semana. Em live, o pesselista citou quatro projetos com temática de gênero e sexualidade que não iriam receber dinheiro público. O projeto era um das finalistas do edital de TVs públicas que contemplava blocos temáticos diversos como manifestações culturais, animação infantil e qualidade de vida, e foi totalmente suspenso no final da semana passada pelo ministro da Cidadania Osmar Terra. A história de Pacarrete chegou ao cinema a partir de edital para longas de baixo orçamento da Agência Nacional do Cinema.

Os roteiristas Natália Maia e Samuel Brasileiro também estavam finalistas do edital. "A vitória de Pacarrete é muito importante, mostra a importância de se investir nesses filmes. As séries (do edital) são originais, de todo o País, numa vontade de que todas as regiões produzam. Cultura não só mobiliza muitos empregos diretos e indiretos, mas também é importante para a identidade nacional, o simbólico, a memória", ressalta Natália. "Todo edital, inclusive o pelo qual a gente passou com Pacarrete - que fez com que o filme pudesse ser desenvolvido e agora colhemos vitórias -, seja qual for, tem análise criteriosa de originalidade, conteúdo, adequação às propostas do edital", avança.

"Se Pacarrete fosse gay - com a mesma história, mas gay -, o filme 'estaria no saco' se o Bolsonaro tivesse tido a oportunidade de 'abortar a missão'. A gente nem teria feito", afirma Allan, utilizando-se de expressões da fala do presidente. "(As vitórias) acabam sendo uma resposta, e talvez isso tenha emocionado a plateia do festival e os outros realizadores, porque era um filme vindo do Nordeste do País, dos 'paraíbas'. Nós conseguimos fazer um bom cinema, que inspirou pessoas. Essas conquistas fazem a gente se sentir mais potente. Com isso vem mais responsabilidade, mas mais esperança de que se consiga alçar voos mais altos e realmente resistir mais", confia o cineasta. "Antes disso talvez houvesse um clima de descontentamento e impotência, mas agora a gente consegue entender o valor do que foi feito e usar isso a favor para poder contar outras histórias que precisam ser contadas. Transversais é um projeto que fala de histórias de superação de cinco personagens trans do Ceará. De certa forma tem o mesmo perfil, não de tema, mas de resistência que Pacarrete tem", relaciona.

Pacarrete baila no Olimpo

Pelas mãos de Allan Deberton o Ceará chegou ao Olimpo de Gramado, um dos mais importantes e longevos festivais de cinema do País. Apesar de sua vigorosa produção cinematográfica nos últimos anos, o estado nunca havia sido premiado nas principais categorias de Longa-Metragem, a joia da coroa do festival. Pacarrete traz para o Ceará oito Kikitos. Oito! Se não for consagração o nome disso, não sei que outro nome dar.

O baile de Pacarrete em Gramado, a um tempo que soa como justiça histórica, também poderia anunciar uma fase próspera do cinema cearense. Mas não o faz, infelizmente. Há três anos sem edital específico para a área, o cinema no Ceará mais sobrevive que exubera. E se sobrevive é mais pela determinação aguerrida de seus realizadores que pelo apoio oficial.

Não deixa de ser curioso, para dizer o mínimo, que essa glória nacional venha justamente com Pacarrete. Um filme de baixo orçamento, realizado por um diretor estreante em longas, com um elenco protagonizado por uma atriz que não está em horário nobre na televisão, passado numa cidade do interior cearense, e cujo projeto foi rejeitado em alguns editais.

Talvez Pacarrete, a personagem que dá nome ao filme e que deu prêmio inédito à Marcélia Cartaxo, traduza o espírito do longa (e não o contrário, como seria de se esperar). Entender que a arte é a única possibilidade de resposta à hostilidade do mundo é o motriz para personagem e diretor. E Allan se agarra a esta certeza ao mesmo tempo em que a expande.

Não à toa, Pacarrete, o filme, tem em seus créditos talentos da novíssima geração do audiovisual cearense. Uma geração, como se vê, que muito acrescenta ao cinema brasileiro. E muito mais tem a acrescentar.

Pacarrete já é um marco do cinema cearense. Espero que seja um vetor potente do que virá. (Émerson Maranhão)

O que você achou desse conteúdo?