A visita foi inesperada. Um presente talvez para as duas. Adísia e a repórter. O ânimo era o mesmo de quem pouco antes atendeu ao telefone prontamente para saber que seria, mais uma vez, a entrevistada. Decana do jornalismo no Ceará e aniversariante desta quinta, dia 7, não poderia ser diferente. É a ela que homenageamos hoje e em vida como diz ter mais graça. E que se saiba: os 90 anos são todos muito bem vividos, quase 65 só de profissão. É apaixonada pelo que faz.

Percebi na acolhida do abraço ainda na porta do seu apartamento, que se estendeu como uma surpresa pela estante de uma ponta a outra da sala de estar, tomada de livros. Adísia não mora sozinha. Tem a companhia de grandes mestres e autores, não só do jornalismo, mas da literatura, da vida. Sabe viver. Sabe receber. De alegria pronta, humor afiado. "Vou abrir para ficar mais ficar mais fresquinho. O ambiente viu!? Não leve ao pé da letra", brincou ao abrir o janelão de vidro da sala. Ar fresco. Aos 90, Adísia tem de sobra. Acumula sabedoria, experiência de quem viveu para valer. "Duvido que você saiba a idade de Moisés", desafiou no nosso início de conversa, sentada na sua cadeira de cipó, enquanto me ambientava naquele espaço particular, sentada no "sofá do tempo", de couro marrom combinando com a mobília, de madeira pura.

O gosto da jornalista é clássico. Reparei no instante em que a vi pela primeira vez em 2008, quando ainda menina me aventura de ser jornalista. Estudante, à época, pedi seu autógrafo. Sem pestanejar, Adísia atendeu. Não contei o ocorrido no nosso segundo encontro, talvez porque querisse aproveitá-la ao máximo, criando outras memórias.

Na entrevista que segue, Adísia é dona e dama das palavras. É professora do tempo. É amiga da vida e filosofa. O segredo da longevidade ela não contou, mas deu algumas pistas. Será a tacinha de vinho diária? Serão as edições de Cripto para instigar a mente? Será na força e ousadia de ser ela mesma o tempo todo? É muito mais. "Você tem muito que aprender comigo, pode esperar".

O POVO: Quais suas maiores lições com a chegada dos 90 anos?

Adísia Sá: Conhecer mais gente. Eu adoro gente jovem. Eu não gosto de gente da minha idade (cheia de "nhe-nhe-nhem"). Eu não gosto de gente assim. Eu acho que a pessoa deve ser para cima, com sonho! Eu tenho 90 anos, mas já pensando quando tiver 120. Porque se você começar desde cedo (a lamentar a sua idade), você não chega nem aos 60. Então a vida, aqui para nós, se existir outra vida, é tão diferente dessa, que eu prefiro aproveitar essa, que eu ainda estou nela. (risos). Eu sei lá como é a outra.

OP: O que foi mais marcante nesse tempo de vida?

Adísia: Não vou lhe dizer que houve um momento especial porque, a coisa que eu mais queira ser eu fui. Eu sou. É jornalista. Eu só tinha um sonho, era ser jornalista. Eu sempre quis ser jornalista. Logo eu me criei na rua Senador Pompeu, na rua dos jornais. Eu dormia ao som das rotativas, e acordava com o cheiro da fuligem. As máquinas antigamente derretiam o chumbo para fazer as letrinhas. Nasci não, porque nasci no interior, mas vivi todo o tempo na Senador Pompeu, cercada de jornais. Eu criei jornalzinho manuscrito, criei jornalzinho de ação católica, mas até que chegou minha vez, eu entrei na Gazeta, depois fui para O Estado, onde fiquei por muito tempo, e finalmente O POVO, até que abrimos cursos de jornalismo, que eu fundei aqui. Os momentos mais felizes da minha vida foram os momentos dentro de uma redação. Eu vivia a redação.

OP: O que mudou em relação ao jornalismo de quando a senhora começou para o que é feito hoje?

Adísia: Tudo! Porque hoje é um jornalismo científico. Antigamente, era um jornalismo mais empírico, mais natural, mais espontâneo, mais da gente. Hoje, não. Hoje, vocês saem para a faculdade, vocês têm uma formação acadêmica diferente. A nossa não. A vida que ensinou a fazer jornal. Eu fui a primeira mulher de jornal mesmo. Porque a Rachel de Queiroz era colaboradora. Profissional mesmo de dentro da redação, foi professora Adísia.

OP: Sobre a mudança de comportamento do leitor, que se informa das notícias pelo celular, como vê o uso das redes sociais?

Adísia: Eu não sei o que é isso não. Não sei o que é rede social. "Facebook", "Instagram".... Só palavra feia..., peraí! Aqui é uma casa de família. Vem com palavrão aqui? Internet, uma linguagem tão etérea. Não, eu acho que aperfeiçoou o exercício profissional porque na minha geração foi improvisada. Hoje vocês entram no jornal sabendo tudo. A geração que vocês conhece de nome, todo esse pessoal, como Assis Chateaubriand.

OP: Como a senhora avalia os ataques que a imprensa vem sofrendo no Brasil?

Adísia: Olha, eu acho que o jornalista, é muito difícil ele separar o cidadão do profissional. Mas que quando sou profissional, sou só profissional. Quando eu confundo a cidadã, que tem partido, que tem uma preferência, aí você nem é a cidadã nem é a jornalista. É muito difícil ser jornalista. É muito difícil. Não é só saber escrever não, não é só saber perguntar não, é uma postura. Aonde você chega, você é jornalista. Você sempre é uma referência. Então se você puder ser melhor referência é porque aí, nesse momento, você não é sozinho, é toda uma categoria com você. E nós somos muito vigiados, muito fiscalizados, quase que policiados... O jornalista é policiado. Porque nós vivemos observando os outros eles também se veem observando a gente. O jornalista vive de observar o mundo. Que tudo que ele vê vira notícia. E você passa a ser também notícia. Para o outro.

OP: Qual seu maior aprendizado até aqui?

Adísia: A própria vida! Cada dia você aprende uma coisa. A melhor coisa que tem a liberdade da pessoa ser o que é. É Píndaro, o grande poeta grego. Ele dizia sempre: "ser quem és". Você ser quem você é não é fácil. É muito difícil. Porque você se conhece, e às vezes você aparenta para o outro alguém completamente diferente de você. A vida é muito engraçada. Eu gosto da vida. Eu não sou gulosa assim de tempo não, mas eu quero chegar à idade de Moisés (120 anos, segundo relato bíblico no Livro do Êxodo). Eu fui criada como menina pobre, comendo arroz com feijão, foi comendo comida de gente (os nomes de hoje são todos diferentes), e nós tínhamos uma pequena pensão, sempre tinha comida. Mas a mamãe dizia: "o último que come é a família. Primeiro, o hóspede". Família sempre tem uma briguinha, "fale baixo, o hóspede está ouvindo". Quer dizer, a gente não vivia uma vida de família. Porque a preocupação nossa era com o outro. Então eu aprendi muito a tolerância. Mas eu, por natureza, sou uma mulher "mal-educada", igual a Rachel (de Queiroz). Rachel quando se zangava, "saia de perto!". Eu não queria imitar Rachel, mas qual foi a pessoa da minha geração que não quis ser Rachel de Queiroz? Mas Rachel só existia uma. Ela sabia quem ela era.

OP: Olhando hoje qual a mudança que o jornalismo fez na sua vida?

Adísia: Eu sou outra mulher. Eu quando saía para ser jornalista, eu não era Adísia, eu era jornalista. Eu não confundia os papéis. Se saía para entrevistar você, eu não tinha que me colocar, eu, Adísia, era a repórter lhe entrevistando. A diferença é essa. Porque nós jornalistas somos duas pessoas diferentes. Você como jornalista é uma coisa, você vai me entrevistar, você faz as perguntas que deve fazer, e talvez como pessoa, numa convivência diária, você não fosse assim. Então são duas pessoas distintas, o jornalista e o cidadão ou a cidadã. Eu gosto muito de ser jornalista. Muito, muito, muito. Devo muito do que eu sou à imprensa. Também tenho consciência de que dei bastante à imprensa.

OP: Para quem ainda quer chegar à "idade de Moisés". O que deseja para o futuro?

Adísia: É o conselho do Píndaro, minha filha. Ser quem és. Do que adianta ganhar o mundo todo se vier a perder a sua alma. Isso é bíblico. O que quer dizer isso? É ele (o homem) ganhar tudo e não ser ele. Ele é infeliz.

Adísia por ela mesma

Eu sou muito Adísia, viu. Eu não sou educada. Eu sou uma filha do povo. Então eu aprendi as coisas na própria vida. E eu sou de uma família, a família Sá, muito boa, muito calminha, mas quando se zanga, sai de perto. Eu herdei muito da minha família. Às vezes magoo as pessoas... Hoje não, já estou mais controlada. Mas mesmo assim, de vez em quando, eu sou... Por exemplo, se eu achar que vocês são chatos, eu digo com a maior naturalidade... e ninguém diz. Nós vivemos muito um mundo de aparência, um mundo mais educado, porque nem sempre aquela coisa que é mais espontânea agrada ao outro. A vida é uma lição, um livro, minha filha. Todo dia você tira uma lição da vida. E se você não aproveitar a lição da vida, vai aprender onde? Num livro? No livro aprende a técnica. Não aprende a viver. Você aprende a viver vivendo, como você aprende a amar amando. "Ah, não. Amo fulano!" Você já viveu para saber se ama mesmo? É a convivência que diz as coisas, assim é o jornalismo. Agora, se me perguntarem, "Adísia, se você não fosse jornalista, o que você seria?", sabe o que eu respondi? Infeliz. Se eu não fosse o que eu fui e o que ainda sou dentro de mim, que é jornalista, eu seria uma mulher infeliz.