Com impactos em todas as atividades - já dura mais de 50 dias a suspensão das aulas presenciais devido ao combate à pandemia de Covid-19 -, não há previsão de reabertura das escolas do Estado. Desde 19 de março, por determinação governamental, as instituições de ensino passaram a se valer de estruturas digitais para tornar possível a continuidade do processo de aprendizagem de crianças e adolescentes da educação básica. Contudo, as experiências de implementação de atividades remotas vem tornando cada vez mais expostas as disparidades dentro dos sistemas educacionais.
Enquanto as escolas da rede privada de ensino já se valiam de plataformas online para apoiar a aprendizagem, com atores escolares já familiarizados às ferramentas, as redes públicas municipais têm menos de 50% dos municípios com escolas mantendo atividades de ensino remoto, devido, sobretudo, à dificuldade de acesso à internet de cerca de 40% dos alunos, conforme estimativas da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime-CE). Já a rede estadual vivencia empecilhos semelhantes aos dos municípios, ainda que de forma menos profunda. Com alunos no último ano do Ensino Médio, a preocupação se concentra em como o futuro ingresso no Ensino Superior poderá ser prejudicado, caso o isolamento se prolongue.
Diante das possibilidades abertas por portarias e medidas provisórias do Governo Federal e pelo parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), que flexibilizaram os 200 dias letivos e passam a contabilizar as aulas remotas dentro das 800 horas de carga horária obrigatória, Ada Pimentel, presidente do Conselho Estadual de Educação (CEE) lança o olhar para o que virá pós-pandemia e bate em uma tecla. “A nossa grande preocupação é o que será feito com os alunos que ficarem para trás. Como será o acolhimento dessas crianças que muitas passaram por várias tipos de violência: simbólica, de fome, de casa apertada, física? Como será o acolhimento dos professores, que precisarão ter a formação ressignificada?”, questiona.
Ponto de vista
Na rede pública municipal de ensino de Fortaleza, temos tido orientações de aprendizagem, passadas pelos professores, a cada semana. Na educação infantil, há sugestões que envolvem leitura, criatividade e fortalecimento de vínculos entre crianças e seus responsáveis. Recebemos vídeos dos professores, que conversam com elas e as sugerem algo lúdico para ser construído. No Ensino Fundamental 1, as atividades, além do incentivo à prática da leitura, já focam mais nas disciplinas, especialmente, em versões de reforço aos conteúdos já dados. O material é enviado em pdf e repassado aos pais em grupos do Whatsapp, Não há aulas online. Os pais buscam cumprir as tarefas, mas há aí inúmeras dificuldades. Muitos chefes de famílias, principalmente, mães que cuidam sozinhas das crianças, continuam trabalhando fora e vêm deixando os filhos com vizinhos, familiares que moram perto ou em outros municípios. Há famílias que vêm tentando se virar por iniciativas independentes, fabricando produtos em casa, para a venda em domicílios. O tempo continua escasso. Há pais analfabetos ou semianalfabetos. Milhares das 231 mil crianças matriculadas e suas famílias vêm sofrendo, emocionalmente, sobrevivendo de doações. Como se já não bastasse, as famílias não possuem internet suficiente que suporte o modelo de educação a distância recomendado pelo Conselho Nacional de Educação. São fatores seríssimos que estão sendo ignorados. Aprofunda-se o fosso das desigualdades sob conivência de quem deveria prezar por amenizá-las. Como integrante do Conselho Escolar, pelo Segmento Pais, juntamente com direção e coordenação da escola onde meus filhos estudam, venho tentando tranquilizar os responsáveis. Nosso discurso é: façam o que estiverem ao alcance. Antes de tudo, cuidem-se e ajudem a cuidar do outro. Preocupem-se mais em prover o dia a dia. Além da comida, deem carinho, confiança, segurança e proteção para as crianças. Isso é o mais importante agora. Como mãe e entusiasta da educação pública, esta tem sido também minha principal preocupação.
Sara Rebeca Aguiar, professora, jornalista e mãe de Gabriel, 8, e Lucas, 5, alunos da rede municipal de ensino, em Fortaleza
Realidade de acesso à internet e à tecnologias*
91% do total de alunos do Mundo e mais de 95% da América Latina estão temporariamente fora da escola devido à Covid-19.
67% dos domicílios no Brasil possuem acesso à internet, indo de 99% de acesso na classe A até 40% nas classes D e E.
27% de quem não tem acesso relata o alto custo como motivo principal.
93% de quem tem acesso usa pelo telefone celular.
42% dos domicílios brasileiros têm computadores.
40% em média dos alunos das redes municipais de educação do Ceará não têm acesso à internet, podendo chegar até 50% em alguns municípios, conforme estimativas da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime - Ceará).
Entre os alunos da rede particular cearense, a falta de acesso não chegaria a 5%, de acordo com cálculos do Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino do Ceará (Sinepe).
A Secretaria Estadual de Educação (Seduc) não forneceu estimativa percentuais de alunos sem acesso à internet na rede estadual.
76% dos professores buscaram recentemente desenvolver ou aprimorar seus conhecimentos sobre o uso das tecnologias para auxiliar nas aulas.
42% indicam ter cursado alguma disciplina sobre o uso de tecnologias durante a graduação.
22% participaram de algum curso de formação continuada sobre o uso de computadores e internet nas atividades de ensino.
67% dos docentes alegam ter necessidade de aperfeiçoamento profissional para o uso pedagógico das tecnologias educacionais.
*Dados da pesquisa Cetic 2019
O que dizia a lei antes
- A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996, dispunha que a educação básica, nos níveis fundamental e médio, seria organizada com carga horária mínima anual de 800 horas para o ensino fundamental e para o ensino médio, distribuídas por um mínimo de 200 dias de efetivo trabalho escolar.
- A LDB dispunha da possibilidade de fornecer ensino remoto “como complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais”.
- Já a Educação à Distância (EaD) é prevista também na LDB, com atualizações em 2005, 2017 e 2018. Em 2018, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou a liberação de 20% da carga horária do ensino médio diurno para a educação a distância. Ada Pimentel, presidente do Conselho Estadual de Educação (CEE), no entanto, indica que a modalidade de ensino que vem sendo implementada durante a pandemia não se trata de EaD, e sim de ensino remoto - assemelhando-se apenas no uso de tecnologia como mediadora das atividades.
O que ficou estabelecido com a pandemia
- A portaria 343, de 17 de março de 2020, estabeleceu a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do novo coronavírus.
- A Medida Provisória 934 de abril de 2020 dispensou, em caráter excepcional, as escolas de educação básica da obrigatoriedade de observar o mínimo de 200 dias letivos de efetivo trabalho escolar, permanecendo a carga horária mínima de 800 horas.
- Em 28 de abril, o CNE publicou parecer que orienta estados, municípios e escolas sobre as práticas que devem ser adotadas durante a pandemia, além de propor normas nacionais gerais. Pelo documento, ficou entendido que as aulas e as atividades à distância contarão como horas letivas ou terão de ser integralmente repostas quando as aulas presenciais forem retomadas.
Críticas ao parecer do CNE
- A Campanha Nacional pelo Direito à Educação assinou carta em que aponta que diante do cenário de desigualdades sociais e de acesso à internet, “o direito à educação, em termos de acesso, permanência e qualidade dos processos de ensino-aprendizagem, fica lesado, deixando milhões de estudantes em situação precária e desigual”.
- Para a presidente do CEE, o parecer é bem estruturado e contextualizado e aponta que deve ser levado em consideração o atendimento dos objetivos de aprendizagem e o desenvolvimento das competências e habilidades a serem alcançadas pelos estudantes em circunstâncias excepcionais provocadas pela pandemia. “O parecer abre possibilidades, mas pode ser que elas não sejam exequíveis na sua totalidade (diante das desigualdades de acesso).”
- Nas 728 escolas da rede estadual de ensino, as atividades educacionais remotas seguem constantes desde o decreto estadual, de março, que suspendeu as aulas presenciais. Algumas escolas já contavam com uma plataforma online, a Aluno Online, que servia de acompanhamento de dados cadastrais e informes. Foi ela que funcionou, em um primeiro momento, como forma de interação entre gestões escolares e alunos. Em outras instituições, foi por meio de WhatsApp que essa conversa se deu.
- A partir de abril, o Google Classroom passou a ser utilizado como ferramenta educacional. Conforme a Seduc, o livro didático segue como principal ferramenta para as aulas remotas. A pasta informou que estabeleceu parceira, por meio de chamada pública, com 12 plataformas de ensino que oferecem, gratuitamente, apoio na organização das atividades de educadores e estudantes.
- Sem informar um percentual, a secretaria apontou que, para alunos que não têm acesso a internet, atividades impressas têm sido elaboradas por professores “de forma que todos possam acompanhar os conteúdos”. As gestões fazem acompanhamentos de quais alunos têm respondido às atividades e participado das aulas, e um professor ou mesmo um líder de turma reforça o contato com com estes alunos. A TV Ceará (TVC) tem transmitido aulas das diversas disciplinas, de segunda a sexta-feira, às 14h.
- Atividades remotas na rede estadual deverão, ao fim do período de suspensão, serem avaliadas e poderão compor a carga horária obrigatória.
"No começo tive um pouco de dificuldade de me adaptar a rotina e ao ritmo não presencial. E tem colegas que até hoje seguem com essa dificuldade. Um colega falou que não tá tendo como fazer as atividades porque tá precisando trabalhar para ajudar a família. Tem sido muita atividade, tá sendo muito puxado e todas as estratégias dos professores têm ajudado: as lives no Youtube, os links... Mas isso é pela internet, e tem aluno baixa renda que não tem acesso à internet, ou não tem Wi-Fi, ou mora longe do centro."
Hugo Menezes Vasconcelos, 17, aluno da Escola Estadual de Ensino Médio Júlia Alenquer Fontenele, em Pindoretama
“Não posso dizer que é uma experiência de todo ruim. Se nossos alunos tivessem acesso à tecnologia de uma forma mais ampla não seria algo que teria grandes perdas. Mas, dada a realidade do aluno e se tratando de um escola de interior, fica complicado. É a maior dificuldade que temos hoje. Há ainda os que têm acesso a internet, mas pelo celular, e não por um computador, o que faz com que editar documentos seja mais trabalhoso. Há os que têm apenas dados móveis e não Wi-Fi, aí dificulta que eles vejam vídeos, materiais mais longos, plataformas mais elaboradas.”
João Rocha, professor de inglês da Escola Estadual de Ensino Médio Profissional Pedro de Queiroz Lima, em Beberibe
- O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) segue com datas sem sofrer qualquer alteração. As inscrições começam no dia 11 de maio e as provas presenciais estão previstas para acontecer dias 1º e 8 de novembro. O Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) tem criticado a decisão de não alterar o calendário e recomendou o adiamento - ação apoiada pela Seduc.
- Por meio de nota, o MEC afirmou que “mantém diálogo constante com o Consed, além de outras entidades que representam as comunidades escolar e acadêmica, com o intuito de estabelecer medidas conjuntas que sejam as mais assertivas neste momento de enfrentamento à pandemia do coronavírus”. Questionado sobre estudo para adiar a execução do Enem, o Inep não respondeu até o fechamento desta edição.
- Dos 184 municípios do Ceará, a Undime estima que em cerca de 90 o ensino remoto esteja acontecendo. O número já foi maior em abril, e chegou a 110. Contudo, cidades que fizeram períodos de experiência com a modalidade de ensino acabaram por optar por antecipar férias ou deixar as aulas em suspenso.
- Os fatores principais que distanciam o ensino remoto da realidade dos município são, para presidente do órgão e secretária da Educação do município de Crateús, Luiza Aurélia Costa, a falta de plataformas online pré-existentes disponíveis na secretarias, a não formação dos professores para o tipo de estratégia online e, principalmente, a defasagem de acesso dos alunos a internet. A presidente aponta que cada município tem autonomia de decisão, e que diante das condições, em Crateús, considerou mais justo com os alunos a suspensão.
- Nos que suspenderam as aulas, o trabalho tem se concentrado em planejar o retorno. O plano disponibilizado pela Undime prevê uso de sábados letivos, aumento de 20 minutos da carga horária diária e cadernos de atividades de cada área do conhecimento a serem respondidos nos fins de semana. Além disso, a entidade tem orientado que os municípios comecem a pensar na informatização das secretarias de educação e formação de professores.
- As redes municipais que mantiveram atividades remotas terão o ensino disponibilizado digitalmente avaliado, ao fim do período de suspensão, e poderão compor a carga horária obrigatória.
Em Fortaleza
- As aulas municipais em Fortaleza seguem de forma remota. Conforme a SME, as unidades municipais têm adotado “como estratégia de reforço de ensino e aprendizagem a orientação de estudos com atividades domiciliares, planejadas e orientadas pelos professores e entregues aos estudantes e seus familiares pela unidade escolar”. Na educação infantil, as ações visam “o fortalecimento da integração das instituições educacionais e famílias” e o “fortalecimento dos vínculos, afetos e relações, além da proteção e cuidados das crianças”.
- O índice de acesso dos alunos da rede particular à internet ultrapassa 95%, conforme estima o professor Airton Oliveira, presidente do Sinepe. Isso faz com que o ensino remoto seja facilitado. A existência de plataformas online, cada escola com a sua, antes da pandemia também ajuda com que alunos, professores e familiares já tenham alguma familiaridades com ferramentas digitais que agora são utilizadas de forma mais intensa.
- Desde o decreto de suspensão das aulas presenciais, as escolas da iniciativa privada começaram com repasse de atividades online naquele mês e, em abril, seguiram duas estratégias: a maioria (75%) seguiu com as aulas e cerca de 25%, para estruturarem os planos de aula e as plataformas a nova exigência digital, anteciparam as férias escolares para abril.
“Ela tem feito dois das aulas remotas com toda a turma, e três de aulas gravadas e repassada pela professora junto com as atividades. Ela se interessou mais com o vídeo gravado. Ao vivo vem todos os amigos e muitas telas para ela prestar atenção, ela acaba se dispersando. As aulas têm ocupado três horas do dia da Cecília. Tem de ter muita criatividade. A gente busca internet, lê livro, vai arranjando atividade. E aí é que a gente valoriza ainda mais, e vê o quanto é necessário o papel do professor.”
Mirella Pereira, 38, servidora pública federal e mãe da Cecília Leite, 3 anos, aluna do Infantil III da rede particular de ensino
O entrave financeiro
A inadimplência tem se tornado um problema na manutenção das escolas, principalmente as com número menor de alunos. O índice de pais que não têm pagado as mensalidades escolares, que era de cerca de 12% a 14%, saltou para 40%, segundo levantamento do Sinepe. Na última quarta-feira, 6, Justiça cearense determinou concessão de 30% de desconto para alunos que estejam matriculados na rede privada.
- Conforme nota técnica do Todos Pela Educação o cenário que se apresenta no retorno é o de intensificação de problemas já existentes, como evasão escolar e impactos emocionais de curto e longo prazo. Para isso, o retorno deverá ser gradual e estar atento à saúde emocional e física da comunidade escolar; é preciso que seja feita avaliação diagnóstica imediata para identificar os diferentes níveis de aprendizagem dos estudantes no retorno às aulas e programas de recuperação da aprendizagem; e estabelecer uma comunicação mais frequente com famílias.
“É preciso fazer, ao retornar a ensino presencial, as avaliações diagnósticas de cada aluno. É isso que vai dar condições do professor e da escola saberem em que estágio está cada aluno e a partir daí, reorganizar o calendário escolar e trabalhar as dificuldade individuais, fazendo com que eles, embora estejam em diferentes patamares nesse retorno, alcancem a linha de chegada em pé de igualdade.”
Ada Pimentel, presidente do Conselho Estadual de Educação (CEE)
O Conselho Nacional de Educação (CNE) recomendou, para todos os níveis e modalidades de ensino, a realização de atividades pedagógicas com a utilização de Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC), sem considerar que 42% da população brasileira não possui computador em casa, segundo pesquisa realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, em 2018. Salienta-se que, além das atividades de ensino, muitos brasileiros estão realizando teletrabalho, o que coloca a demanda por mais equipamentos por família. Deve-se considerar também as condições de acesso à internet, o ambiente de estudos, a formação dos professores, a sobrecarga de trabalho para os pais, as dificuldades dos estudantes diante da nova realidade pedagógica, entre outros aspectos.
O resultado dessa política pública é o aprofundamento das desigualdades sociais, pois apenas aqueles que dispõem do capital cultural e tecnológico terão o seu direito à educação garantido. Essa condição é explicitada na manutenção do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) pelo Ministério da Educação (MEC), principal meio de acesso ao ensino superior no País. Num contexto em que o isolamento social é uma questão de sobrevivência, muitos estudantes não têm acesso aos equipamentos necessários em casa e, por isso, não conseguem estudar para o exame. E esse processo excludente está presente da Educação Infantil ao Ensino Superior. Portanto, a política pública do governo federal oficializa a exclusão de milhões de brasileiros do seu direito à educação.
Cabe à sociedade civil reagir e buscar as condições para garantir o direito à educação de todos e todas. Os profissionais da educação, especialmente das universidades públicas e das redes estaduais e municipais de educação, com apoio de toda a sociedade, precisam se mobilizar, pensar os caminhos para a educação nesse contexto e rejeitar as políticas públicas excludentes e meritocráticas, que visam mais os interesses mercadológicos pelo lucro do que a formação humana.
Heulalia Charalo Rafante
Diretora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (Faced-UFC)