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"As violências que sofremos não estão de quarentena", relata morador da comunidade do Dendê
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"As violências que sofremos não estão de quarentena", relata morador da comunidade do Dendê

Regional VI concentra o segundo maior número de casos de coronavírus na Capital. Até a última sexta-feira, 22, o bairro Edson Queiroz registrava 143 casos da doença e nove óbitos
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MOVIMENTO NA Comunidade no Dendê durante o lockdown: insegurança convive com ameaça do novo coronavírus (Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves MOVIMENTO NA Comunidade no Dendê durante o lockdown: insegurança convive com ameaça do novo coronavírus

"A quarentena na favela é desse jeito: o coronavírus atacando de um lado e a bala atacando do outro." O relato é de Michael Gomes, estudante de História, agente educacional e coordenador do Coletivo Dendê de Luta. Aos 22 anos, ele também é presidente do Conselho de Saúde da Regional VI e pai de um menino de um ano e dois meses. Em conversa com O POVO ele relata o que vive e percebe na Comunidade do Dendê, situada no Bairro Edson Queiroz, ocupando 375,9 mil m² ao lado da Universidade de Fortaleza (Unifor).

Michael conta que alguns amigos tiveram parentes que morreram pela Covid-19 e que sabe de relatos de conhecidos, mas que ninguém mais próximo a ele contraiu o vírus. Já as histórias de tentativas de assassinatos e de homicídios são muitas. "Outro dia estava limpando a casa, ouvi tiros e quando saí uma senhora apontou para o meu portão; um rapaz tinha sido assassinado bem ali. Outro dia uma troca de tiros furou a caixa d'água da minha avó. Ontem mesmo teve 'Réveillon' aqui na rua", conta se referindo a uma troca incessante de tiros que aconteceu menos de 24 horas antes da entrevista.

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Segundo boletim epidemiológico da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Fortaleza, a Regional VI - onde está o Dendê e diversos bairros com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) - "permanece relativamente com baixa morbidade" para o novo coronavírus. Ao mesmo tempo, a área concentra o segundo maior número de casos, atrás apenas da Regional II. Até a última sexta-feira, 22, o bairro Edson Queiroz registrava 143 casos da doença e nove óbitos pela Covid-19.

O jovem que nasceu no Dendê e desde então vive na comunidade "com muito orgulho e satisfação" relata que "nos primeiros meses a comunidade seguiu o mesmo fluxo". A vida seguiu quase sem mudanças, as pessoas nas calçadas, jogando baralho, tomando cerveja, conversando. A máscara se tornou um acessório cotidiano somente após o decreto governamental que a tornou obrigatória. "O chamado corre continua rolando a solta e isso enverniza a consciência das pessoas para entender quais são as ameaças maiores do momento. Uma vez que elas estão acostumadas a presenciar atos bárbaros de troca de tiros e assassinatos e o coronavírus não é capaz de parar essa realidade de violência, elas seguem a vida", analisa. Na sua percepção, atualmente os maiores desafios sentidos na favela são a fome, o desemprego e a violência.

A Secretaria da Segurança Pública Pública e Defesa Social (SSPDS) contabiliza, desde março, 37 homicídios na Área de Segurança Integrada 7 - que abrange o Edson Queiroz e outros 15 bairros. Desde o início do ano, foram três pessoas assassinadas em janeiro, oito em fevereiro, 18 em março, 11 em abril e oito até o último dia 23. "A gente está de quarentena, mas tem muita coisa que não ficou de quarentena. Um grande exemplo são as violências, tanto visíveis quanto invisíveis, que sofremos", afirma Michael.

"É muito mais fácil as pessoas da periferia fazerem o dito isolamento social quando, por exemplo, a ordem é dada pela facção que determina aquela área", lamenta Michael. "As pessoas estão acostumadas a lidar com várias ausências, inclusive do poder público. São várias lacunas; de políticas públicas afirmativas, de saúde, de educação. Quando o poder público tenta se impor a este lugar, esse poder que se apresenta é estranho e abstrato; dificilmente consegue se materializar em ações concretas", pondera. "Então as pessoas tendem a entender como 'doença de rico', 'besteira' ou mesmo uma 'gripezinha'."

Junto de outros jovens no Coletivo Dendê de Luta, o universitário procura "mudar histórias". Para ele, muitas pessoas não vivem histórias propriamente delas, mas realidades que foram conformadas à forma como se estruturam as oportunidades na periferia. Por isso a comunidade tem feito de campanhas de enfrentamento à fome e de conscientização contra a Covid-19. Coletivamente, os jovens conseguiram entregar 230 cestas básicas e vêm transformando os boletins epidemiológicos em linguagem mais acessível. "A gente faz uns cards para divulgar nos grupos e vai dizendo 'Galera, tá bem pertinho, se cuidem'; sempre atualizando", conta.

Desde a chegada do Sars-Cov-2 à Fortaleza, a Prefeitura apresentou duas ações como iniciativas diretas com as comunidades, ambas em abril. No dia 14 daquele mês, o prefeito Roberto Cláudio pediu o envolvimento direto dos vereadores para chegar às lideranças comunitárias e redes de contatos locais para reforçar a mensagem do isolamento social dentro das próprias comunidades. Dez dias depois, foram realizadas reuniões com representantes de comunidades de áreas vulneráveis com maior crescimento de óbitos até então (Barra do Ceará, Mucuripe, José Walter, Grande Bom Jardim e Aerolândia). Também a fim de conscientizar sobre a importância do isolamento social.

 

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