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Mucambo vive o desafio de manter a melhor educação pública do Brasil em meio à pandemia
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Mucambo vive o desafio de manter a melhor educação pública do Brasil em meio à pandemia

| EDUCAÇÃO | Município cearense lidera o desempenho do Ideb, mas ensino remoto revelou distorções de acesso que comprometem educação neste ano e poderão dificultar 2021
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MUCAMBO, CE, BRASIL, 21.09.2020: Valneide Benardo e Familia. Educação de Mucambo vive o desafio de manter bons índices no Ideb, mesmo na pandemia. Município foi o mais bem avaliado do Brasil do 1o ao 5o ano. Mucambo-Ceará-Brasil.. em época de COVID-19.  Em destaque o filhos de Valneide Bernardo, Antônio Renan, 11 anos, Francisco Ronison, 14 anos, Maria Eduarda, 7 anos.  (Foto: Aurelio Alves/ O POVO). (Foto: Aurelio Alves/ O POVO)
Foto: Aurelio Alves/ O POVO MUCAMBO, CE, BRASIL, 21.09.2020: Valneide Benardo e Familia. Educação de Mucambo vive o desafio de manter bons índices no Ideb, mesmo na pandemia. Município foi o mais bem avaliado do Brasil do 1o ao 5o ano. Mucambo-Ceará-Brasil.. em época de COVID-19. Em destaque o filhos de Valneide Bernardo, Antônio Renan, 11 anos, Francisco Ronison, 14 anos, Maria Eduarda, 7 anos. (Foto: Aurelio Alves/ O POVO).

A educação em Mucambo, município cearense com melhor Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) no Brasil em 2019, ainda comemora com justiça o resultado divulgado este mês pelo Ministério da Educação. Porém, o desafio agora é manter a qualidade do ensino em meio aos efeitos devastadores da pandemia da Covid-19 trazidos, também, para a sala de aula. O desempenho dos estudantes do 1º ao 5º ano do ensino fundamental da cidade do Semiárido nordestino, localizada na região Norte do Ceará, saltou de um regular 6,8 para um excelente 9,4 em português e matemática.

Mas como preservar ou aumentar o nível do ensino, se em Mucambo há histórias como a de Valneide Bernardo de Brito, 34 anos, e seus quatro filhos. A jovem mãe de dois meninos e duas meninas, desde que o novo coronavírus se espalhou pelo Ceará, se desdobra para que os rebentos percam o mínimo com a educação à distância.

Sem dinheiro suficiente para pagar uma internet de qualidade, sem nenhum computador em casa e apenas um aparelho celular para os quatro alunos, Valneide Bernardo faz o que pode com a soma do que ganha como empregada doméstica em Mucambo, mais a cota do bolsa família e uma "ajuda" dos dois ex-maridos.

"Ganho R$ 25 pelo dia trabalhado, não tenho carteira assinada. Tem mais R$ 200 do bolsa-família, recebo R$ 100 que o pai dos meninos me dá e R$ 250 que o pai das meninas manda. Isso tem que dar para comprar comida, pagar aluguel, luz, roupa, remédio e internet", faz as contas a trabalhadora.

O caso de Valneide Bernardo, anota Eneide Rodrigues Rocha, 41, secretária da Educação de Mucambo, faz parte de um universo de 25% das famílias de estudantes da rede pública local que não têm acesso ou têm acesso precário à rede de Internet e a dispositivos eletrônicos para a ensino remoto.

Antes da pandemia do novo coronavírus, orgulha-se Eneide Rodrigues, Mucambo conseguiu fazer com eficiência as lições cotidianas que colocaram o município no topo do Ideb no Brasil. Superando, inclusive, Sobral - cidade cearense que virou referência nacional de educação no ensino fundamental e médio.

"O ano de 2020 é desafiador, a Covid-19 veio e trouxe o isolamento social, mas o município não podia paralisar. A educação teve de se adequar. Cada profissional transformou a própria casa em um pedacinho da sala de aula e, quando é necessário, ele vai onde o estudante mora. Passamos por uma nova metamorfose, fazer educação e salvar vidas não é fácil. E, lógico, o ensino à distância não é mesma coisa que o presencial", avalia Eneide Rodrigues.

Em Mucambo, são 2.726 estudantes distribuídos em 15 escolas. Cinco colégios, "especializados em turmas foco", estão localizados na sede do município e os outros dez encontram-se distribuídos pela zona rural. "A luta agora da gente é conseguir superar o problema que é realidade e não perder a mão do que está dando certo para o aluno e a aluna", afirma a secretária que tem 25 anos de magistério no Semiárido cearense.

"Não perder a mão", explica Eneida Rodrigues, é manter "o sentimento de comunidade escolar em rede construída há mais de quatro anos" pelo poder municipal. É a nova prova encarada por educadores no município que fica a 299,6 km de Fortaleza e que tem quase a metade de seu produto interno bruto, segundo o Anuário do Ceará, ancorado na renda de aposentados e no Bolsa Família.

O novo contexto da educação em Mucambo, projeta Eneida Rodrigues, é continuar envolvendo as famílias para não deixar que os filhos deixem a sala de aula, agora remota, por causa das "ausências criadas" pela pandemia. "O acompanhamento consciente dos professores na vida escolar do aluno fez a diferença no Ideb até aqui. É um trabalho em teia que cativou elevou a autoestima dos alunos, trouxe os pais para a escola e conseguiu um comprometimento natural do corpo discente", ensina a secretária.

Na casa de Valneide Bernardo, na Vila do Açude, mora o adolescente Francisco Ronison, de 14 anos, ele faz o 9º ano e quando necessário ensina os três irmãos mais novos. Antônio Renan, 11 anos, faz a 5ª série e diz gostar mais de matemática. Maria Eduarda, de 7 anos, é aluna do 2º ano e Ana Heloísa, de 5 anos, está na educação infantil.

Valneide, a mãe, estudou até a 4ª série no município de Graça, vizinho a Mucambo. "É diferente da época que fui estudante quando fiquei grávida pela primeira vez e tive que abandonar os estudos. Não tinha livro como hoje nem o colégio era tão bem construído. A gente faltava aula e ninguém ligava, tanto fazia", compara.

Além de liderar o ranking brasileiro de desempenho do Ideb/2019 em português e matemática entre alunos da 1ª a 5ª série do ensino fundamental, Mucambo também está entre os dez municípios do País com melhor índice de aprendizado para estudantes do 6º ao 9º ano. A cidade do sertão cearense ficou na sexta colocação, segundo tabulação do Instituto Nacional de Pesquisa Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

Uma receita baseada em diagnóstico e dados sobre o aluno

Na prática, o que teria levado os estudantes do 1º ao 5º ano da rede pública de Mucambo serem avaliados os melhores do Brasil nas provas que investigam o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb)? O POVO foi ao município da região norte do Ceará conversar com professores, diretores, pais, alunos e mapeou pelo menos dez pontos que fizeram a diferença até o ano passado.

O diagnóstico da situação de cada aluno é apontado pela maioria dos professores e gestores como o ponto de partida. Celina Borges de Carvalho, 60 anos, 43 anos de magistério e atual diretora da Escola de Ensino Fundamental Maria Vânia Farias Linhares, afirma que o Sistema de Avaliação Permanente do Ceará (Spaece) é uma ferramenta essencial para as escolas da rede pública estadual e municipal de ensino.

"É partir desse Raio-x que passamos a traçar os planos e o que queremos com a aprendizagem de cada aluno e aluna", pontua Celina Borges. O Spaece é um instrumento análise criado em 1992 pela Secretaria da Educação do Estado (Seduc) para aferir as competências e habilidades de estudantes do ensino fundamental e médio da rede pública nas disciplinas de língua portuguesa e matemática.

Em 2019, na escola Maria Vânia foi identificado que um pouco mais de 27% dos 155 estudantes de lá apresentavam deficiência na leitura, na escrita e na matemática. Celina Borges conta que os 42 alunos, distribuídos entre as turmas de 5º, 6º e 7º anos - especialidade do colégio, foram encaminhados para o contraturno com a anuência dos pais. "São crianças de famílias carentes e que os responsáveis não dão suporte em casa porque tiveram pouco acesso à escola", constata a diretora.

No contraturno, explica Celina Borges, um professor foca na deficiência específica do estudante e oferece, também, reforço para os "deveres" passados para fazer em casa.

Além do professor do contraturno, a diretora conta que duas mediadoras para leitura e para matemática ficam volantes entre as salas de aula ou no corredor "estimulando e tomando a leitura, a escrita e acompanhando tabuadas e a solução de problemas do nível dos estudantes". Aluno por aluno é abordado.

O Spaece tabula desempenhos baseados nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) do Ministério da Educação (MEC) e nos Referenciais Curriculares Básicos da própria Seduc.

Um outro caminho adotado na escola Maria Vânia foi priorizar a "busca ativa" de crianças e adolescentes que deixam de ir às aulas. Todos os dias, um quadro de informações existente na sala da diretoria é atualizado por funcionário que confere de sala em sala a frequência dos 5º, 6º e 7º anos.

"A partir de três faltas, vamos à casa deles para saber o motivo das ausências. A parceria dos pais é fundamental para o desempenho da escola e da criança. Além de lembrá-los que o bolsa-escola está ligado à presença dos filhos nas aulas, tento deixar claro que a vida deles só terá outra perspectiva se não abandonarem os estudos", diz Celina Borges. (Demitri Túlio)

Professores tentam manter elos à distância com perdas

Enquanto a professora Antônia Vieira Marques, 38 anos, repassava e corrigia conteúdos enviados para 20 alunos da escola Prefeito Rafael Cláudio (1º ao 4º), a filha Ingrid Marques, de 11 anos, seguia nas tarefas do 5º ano da escola de Ensino Fundamental Maria Vânia Farias Linhares (5º, 6º e 7º).

Desde março deste ano, com a pandemia do novo coronavírus e o isolamento social no Ceará, a sala de jantar da casa de Antônia Marques se transformou em uma extensão da rede pública de ensino de Mucambo, no Sítio Canafístula.

"Há aluno que não tem acesso a computador nem celular. Então, mando para um amigo que mora próximo, ele imprime o material e repassa para o colega. É como a gente vai fazendo para não deixá-los fora do ensino remoto", diz Antônia que é uma das responsáveis pela alfabetização no município.

A professora Keyla Cristina Azevedo, 44, chora ao falar dos obstáculos que a pandemia impôs à comunidade escolar. "A gente se alegra com os títulos, com os prêmios, mas estamos tendo que lidar com as perdas dos alunos", sensibiliza-se a docente da escola Maria Vânia onde ensina nos 5º anos.

Para este ano, projeta Keyla Cristina, não será possível atingir a quase perfeição no ensino e no aprendizado que Mucambo conseguiu e o Ideb confirmou.

"O foco, o zelo que a gente tem com o aluno, a relação com as famílias, o trabalho em rede com professores e diretores se perdeu e estamos vendo como reestabelecer os elos construídos desde quando o Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic) entrou aqui, em 2013, e proporcionou o que é a educação hoje em Mucambo hoje", diz Keyla Cristina.

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