Se, quando chegou ao Brasil, a pandemia de Covid-19 espalhou-se de forma desigual, atingindo algumas regiões mais rapidamente do que outras, neste momento a situação é diferente. Agora, em uma segunda onda da pandemia no País, os casos da doença têm aumentado de forma sincronizada em diversos estados, segundo vem alertando o médico e neurocientista Miguel Nicolelis, coordenador do Comitê Científico de combate ao coronavírus do Consórcio Nordeste. Para o professor, é o momento de se adotar medidas restritivas em todo o Brasil "pela primeira vez". Aliás, se uma ação nacional tivesse sido conduzida com mensagem "clara e transparente" desde o início, o cientista avalia que o Brasil não teria chegado aos 200 mil mortos pela Covid-19 — marca atingida na última quinta-feira, 7. (Colaborou Flávia Oliveira)
O POVO - Como o senhor avalia o atual cenário da pandemia no País?
Miguel Nicolelis - Acho que nós estamos chegando em um ponto muito crítico. Vários fatores estão contribuindo para termos uma crescida sincronizada de casos em todas as regiões do Brasil. Na primeira onda, demorou muito para a Região Sul e a região Centro-Oeste se incorporarem a ela. Agora, a Região Sul está liderando, mas os casos estão crescendo em todo o Brasil. E existe um crescimento que parece ter sido desencadeado, em boa parte de todo território brasileiro, por volta da primeira semana de novembro, o que sugere uma correlação com o período das campanhas eleitorais que antecederam o primeiro e o segundo turnos (das Eleições). Pode ter sido um evento sincronizador, que pode ter gerado essa segunda onda a nível nacional. Quando você junta isso com o espaço aéreo brasileiro que está aberto — então, pessoas infectadas com a nova cepa do Reino Unido estão entrando no País — e a ocupação das UTIs (Unidades de Terapia Intensiva) por todo o Brasil, que está subindo rapidamente, já está cruzando níveis críticos, você está criando condições para que nós tenhamos uma situação bem mais difícil, a nível nacional — particularmente no que tange a todas as indecisões que ainda norteiam a definição desse nosso Plano de Nacional de Imunização.
O POVO - Com as discussões do Comitê Científico, como o senhor analisa a realidade específica dos estados nordestinos?
Nicolelis - Nós publicamos, no dia 18 de dezembro (de 2020), um boletim, e lá mostramos que havia uma reviravolta dramática das tendências de queda que estavam ocorrendo em toda a região. Elas se reverteram, em boa parte. Dois dias atrás, fiz um levantamento de todas as capitais do Nordeste e notei que, com exceção de São Luís, do Maranhão, todas estão com curvas ascendentes. Algumas com velocidade mais rápida do que no começo da pandemia, e outras com velocidade semelhante. Ou seja, é bem preocupante. No Ceará, está tendo uma subida importante, que está sincronizada com várias cidades no Interior: em Caucaia, Hidrolândia e Itaitinga. Até Sobral, que tinha ficado bem abaixo, está começando a ter uma pequena subida nos últimos dias. E essa subida ainda está sincronizada com outros estados do Nordeste e do Brasil. Essa é a coisa mais preocupante do momento, para mim. Com essa nova cepa chegando ao Brasil, tem implicações muito sérias para o Ceará e para todo o País, porque aparentemente existe uma incidência maior em jovens e crianças, o que também afeta todos os planos no Brasil de reinício de aulas.
O POVO - O senhor já havia falado em outra entrevista que os governos deveriam cancelar toda as festas oficiais neste ano. No entanto, alguns estados (não só do Nordeste) vêm discutindo a realização de algumas festas (como o Carnaval) quando houver a vacinação em massa, algo previsto para acontecer neste ano. O que o senhor acha disso?
Nicolelis - Bom, eu não acho que vamos conseguir ter um Carnaval oficial — ou não deveríamos ter. A recomendação seria para o cancelamento de todas as festas públicas de Carnaval, porque não vai dar tempo de ter vacinação em massa, neste ano. Em 2021, pelo menos no primeiro semestre, acho muito difícil. Imagino não ter condição nenhuma, em nenhum lugar do Brasil. E, infelizmente, imagino que vai ter festas espontâneas, blocos, essas coisas que não são oficiais. É uma temeridade, haja vista que as festas de fim de ano já vão contribuir ainda mais para essas curvas crescentes que estamos vendo nesse momento.
O POVO - O senhor acredita que a variante do coronavírus vai chegar a todas as regiões do País?
Nicolelis - É muito provável. São Paulo é a cidade super-spreader (cidade disseminadora) do Brasil, contribuiu para um número muito grande de casos nas primeiras semanas da pandemia. Então, a chance de que essa variante tenha entrado por São Paulo — e outros aeroportos internacionais, mas principalmente por São Paulo — é muito grande, e a possibilidade de ela se espalhar é quase que 100%.
O POVO - Como os governos devem se preparar ou agir nesse cenário em que estamos e que a variante já foi identificada no Brasil?
Nicolelis - Acho que temos que investir na campanha de vacinação. Os governos (estaduais) têm que pressionar o Governo Federal para que esse cronograma e esse plano sejam implementados (o mais cedo) possível, mas ao mesmo tempo nós não podemos ignorar todas as ferramentas que foram bem sucedidas no manejo da primeira onda. Fortaleza fez um lockdown bem sucedido. São Luís fez, talvez, o melhor lockdown do Brasil e até agora está com taxas bem baixas — (o Maranhão) implementou barreiras sanitárias nos meios transporte público que chegam na cidade e no estado, e isso está ajudando demais. O Piauí também. Então, todas essas medidas têm que ser usadas novamente. Acho que, nesse momento, elas deveriam ser usadas em nível nacional, pela primeira vez. Se elas tivessem sido usadas a nível nacional, de uma maneira coerente e com uma mensagem clara e transparente do que precisávamos ter feito, com um lockdown nacional, nós não estaríamos hoje atingindo essa marca de 200 mil mortos.
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