Enquanto as nuvens escuras se arrumam no horizonte, o sol é obrigado a dar uma trégua. É a natureza ensaiando o encontro do céu com a terra. “Tá bonito pra chover!”, algum cearense avisa. Quando a chuva vem é festa, é banho na calçada, é esperança se renovando. E se chove nesta sexta-feira, 19, então, no Dia de São José, diz a sabedoria popular que é o padroeiro do Estado garantindo um bom “inverno”.
Filho e neto de agricultores, Antônio Josué Viana, 62, conhece de perto a expectativa pela descida das águas. Ele é um dos profetas da chuva de Quixadá, no Sertão Central. Por meio dos astros celestes, interpreta as pistas sobre o futuro chuvoso no Estado, anualmente.
“[Chuva] É alegria de ver meu Sertão, meus amigos e meus vizinhos naquela animação! Cheio de fartura e de facilidade. Quando é inverno bom, eles tão alegres! Você chega na casa do pessoal, é uma fartura medonha de milho, de feijão, de melancia...”, descreve.
Nas flores das árvores e no movimento das formigas e das abelhas, o profeta da chuva Erasmo Barreira, 73, também procura pelos sinais de um bom inverno. “A chuva é a coisa mais necessária do mundo. Eu acredito muito que tendo água, tem saúde”, diz.
Ele garante que respeita o Santo Carpinteiro, pai de Jesus Cristo e marido de Maria, mas se a chuva não cair neste 19 de março, o profeta se apega aos indicativos naturais: "Tô empolgado que vamos ter muita chuva [neste ano], mas sou um ser humano. Quando Deus quer e a natureza manda, a coisa dá certo”, reforça.
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A observação cuidadosa do céu e da terra na ânsia de adivinhar a chuva está ligada à necessidade de subsistência no campo. Boa colheita e mesa farta dependem das chuvas. Porém, a relação afetiva com a água no Ceará também tem sua herança na força do catolicismo medieval.
É o que explica o antropólogo Patrício Carneiro Araújo, professor na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). O pesquisador considera que existe toda uma iconografia católica relacionando o calor e o fogo ao inferno, um lugar de sofrimento e provação destinado às almas pecadoras que não se arrependeram.
“O fogo e a quentura vão vir associados ao sofrimento, enquanto a chuva é vista como alívio. Num plano mais inconsciente, a relação construída aqui em relação à chuva, à água e ao frio é vista como um refrigério. Então termina que o momento da água é esperado e festejado como se fosse uma antecipação do céu”, comenta.
A experiência sentimental do cearense com as chuvas repercute fortemente nas manifestações de fé, como fica evidente na crença em São José como o santo provedor de boas chuvas. A data é feriado municipal em Fortaleza desde 2003, sendo celebrada também em outros territórios do Estado.
A conexão do cearense com água se expressa ainda na própria oralidade, como ressalta o professor George Paulino, coordenador do Laboratório de Antropologia e Imagem (LAI) do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC).
"O sertanejo olha para o céu e vê os sinais que a natureza mostra, de que vem chuva e fala que ‘tá bonito pra chover’. Para nós, esse preparo do céu para chuva é um tempo bonito. No Sul e Sudeste, costumam falar de tempo ruim, tempo feio”, compara.
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Um território seco e escasso é o estereótipo mais comum associado ao Ceará e a outros estados do Nordeste. Contudo, a professora Kênia Rios, do Departamento de História da UFC, lembra que a necessidade da chuva “tem a ver com o histórico desgaste do solo cearense por monoculturas” ainda na Colônia e no Império, a exemplo do açúcar e do algodão.
Além disso, o desmatamento da terra para pasto e pecuária, principal atividade econômica no Ceará desde a colonização, aprofundou essa degradação. Para Kênia, o passado de desrespeito com o meio ambiente e o bioma do Semiárido implicou numa dependência de regimes pluviométricos anuais.
“O cearense estabeleceu uma história sagrada com a chuva e, portanto, sua celebração é uma certeza de melhores dias, uma vez que se depender de políticas públicas de irrigação e democratização da água, pouca coisa foi realizada até hoje”, completa.
Nascida na Serra do Machado, em Canindé, e autodeclarada “filha do Sertão”, a professora Sulamita Vieira, da área de Antropologia das Ciências Sociais da UFC, acrescenta que essa dependência da chuva se agravou pela falta de tecnologias eficazes de coleta e reserva de água para consumo.
“Nesse cenário, a natureza termina sendo uma espécie de grande responsável pela existência da água. Assim, a chuva é incorporada à cultura como algo extremamente valioso; algo quase sagrado, muitas vezes, uma variável decisiva, por exemplo, em relação à obtenção, ou não, da safra pelos trabalhadores”, finaliza.
O clima de alegria que acompanha a chegada da chuva ficou eternizado nas manifestações culturais e artísticas do Ceará. Os pedidos pela benção de São José para uma quadra chuvosa favorável estão presentes em boa parte dessas produções. Confira alguns exemplos:
A Triste Partida - Patativa do Assaré
“Apela pra março, que é o mês preferido do santo querido, Sinhô São José / Meu Deus, meu Deus / Mas nada de chuva, tá tudo sem jeito, lhe foge do peito o resto da fé”.
São João do Carneirinho - Luiz Gonzaga
“Eu prantei meu mio todo no dia de São José /Se me ajudar, a providença, vamos ter mio a grané”.
Sinal de Inverno - Eudes Fraga
“Esperei meu amor, esperei com muita fé, que nem um agricultor no Dia de São José / Espera pela chuva, esperei ela voltar, esperei meu amor, até a chuva chegar / Chuva é sinal de inverno no Dia de São José / me dê um sinal, meu amor, se você ainda me quer”.