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Manual prático do contragolpe
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Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

Manual prático do contragolpe

Durante um protesto, no Centro de Recife, duas pessoas perderam parte da visão após serem atingidas por balas de borracha disparadas pela PM. Em Goiás, um professor foi detido por causa de uma faixa no capô de seu carro que dizia "fora Bolsonaro Genocida". Após ser levado à delegacia por policiais militares, sob denúncia de infringir a Lei de Segurança Nacional, o manifestante foi liberado. O que essas duas situações têm em comum?

Uma explicação possível é o fato delas reprimirem expressões de desagrado em relação ao atual presidente. As vítimas da arbitrariedade policial não cometeram nenhum crime. Foram punidas exclusivamente por suas concepções ideológicas. Não cabe aos órgãos de segurança restringir e nem cercear as manifestações populares. Há uma grande insatisfação entre a população que precisa encontrar formas de ser canalizada. É parte do jogo democrático. Tentar invalidar essa dimensão da cidadania, o protesto, é uma característica de governos tirânicos.

A repressão é fruto do medo. O cenário eleitoral em 2022 começa a se tornar mais nítido. A perspectiva de que o atual mandatário do País não seja reeleito disparou o alerta amarelo entre a parcela bolsonarista da sociedade. Não à toa, tais episódios de truculência se avolumam desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se tornou um candidato viável à presidência.

A ameaça de um autogolpe é sempre empregada quando o Governo Federal se vê em apuros. A ideia é manter a oposição constantemente temerosa, como se a possibilidade de uma virada de mesa estivesse na manga. É preciso criar vacinas para que isso não aconteça. Tempo e condição para tanto existem. Talvez faltem estratégia e articulação. O título da coluna de hoje é uma referência ao livro "Golpe de Estado: manual prático", escrito pelo estrategista militar e cientista político Edward Luttwak. Apesar da provocação, a obra não ensina a dar um golpe, mas aborda de forma didática elementos em comum que levam um governo a ser deposto. Trata-se de uma leitura fundamental para compreender o que está acontecendo. Devido às limitações de espaço, faço menção apenas a um aspecto da publicação: o uso do próprio aparelho estatal no golpe.

Ao contrário das insurreições armadas, a tomada de poder no mundo contemporâneo se daria pelo uso de setores do estado como as forças armadas, a polícia e as agências de segurança. De acordo com Luttwak, a técnica do golpe do estado é a técnica do judô: os planejadores do golpe precisam usar o poder estatal contra seus mestres políticos. Isso é feito por meio de um processo de infiltração e subversão no qual uma pequena, mas crítica, parte das forças de segurança são totalmente subvertidas, enquanto a maior parte do restante é temporariamente neutralizada.

Não é segredo para ninguém a ascendência de Bolsonaro sobre as Forças Armadas, bem como sobre suas forças auxiliares, as polícias militares. O presidente encarna perfeitamente a doutrina da Segurança Nacional, surgida na Ditadura Militar, cujo princípio é a fabricação e a perseguição de inimigos internos. Longe de ter sido erradicada após a redemocratização, essa ideologia permaneceu em estado latente nos quartéis até encontrar um governante que desse amparo e ecoasse essa concepção de mundo surgida nos meios militares e operacionalizada no interior da atividade policial. É a partir da ideia de uma ameaça à "segurança nacional" que as liberdades são suprimidas e que as medidas mais extremas, como um autogolpe, são acatadas. Tudo em nome da segurança.

Policiais cumprem determinações superiores, mas possuem autonomia para agir desde que seja para defender a ordem pública. Isso se chama discricionariedade. A concepção do que seja essa "ordem pública", para cada agente de segurança, contudo, é problemática. Uma estrutura social e econômica injusta, calcada na desigualdade social e racial, pode ser uma estrutura "ordeira", onde cada pessoa sabe qual é o seu lugar na pirâmide social. Qualquer ação que venha a questionar esse ordenamento poderia muito bem ser reprimida. Quem define isso é a autoridade pública, muitas vezes encarnada na figura do guarda da esquina.

Cabe aos governadores delimitar o alcance dessa atuação, impondo freios a posturas que fujam do tolerável. Em Pernambuco, o secretário da Segurança Pública caiu após o ocorrido. O recado foi dado à tropa. É preciso fortalecer o controle externo, investir em formação e dotar as controladorias de recursos e independência. O controle social também é fundamental. A participação popular é um elo essencial na constituição de uma segurança pública mais democrática, cidadã e menos militarizada. Para tanto, a população precisa ser ouvida e integrada às políticas governamentais. Voltarei a tratar do assunto em breve. Como diz o meme, a ameaça do autogolpe está aí, mas cai quem quer.

 

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