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Dona Mundinha: o sonho de Natal em forma de lapinha
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Dona Mundinha: o sonho de Natal em forma de lapinha

Presépio é montado anualmente pela própria família da mulher desde 1947
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DONA MUNDINHA, 97 anos,começou a fazer o presépio em 1947 (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE DONA MUNDINHA, 97 anos,começou a fazer o presépio em 1947

O brilho característico do período natalino tem um significado mais do que especial para a aposentada Raimunda da Costa Santos, moradora do bairro Mucuripe, em Fortaleza. Aos 97 anos — bem vividos, como ela mesma faz questão de enfatizar — dona Mundinha, assim conhecida, se orgulha por manter viva uma tradição que já dura 74 anos ininterruptos: a montagem da lapinha de Natal.

O presépio é instalado desde 1947 na garagem da casa dela, localizada na rua Senador Machado. Antes da pandemia, o local se tornava um dos pontos mais movimentados do bairro durante o período de comemorações natalinas. Pessoas de todas as idades aguardavam o ano inteiro para ver de perto a cidade cenográfica que representa o nascimento de Jesus. Em 2020, no entanto, com o surgimento da Covid-19, os filhos da idosa decidiram restringir o acesso à residência para evitar exposição à contaminação, medida que foi adotada novamente neste ano.

“Podia não ter feito no ano passado e nem agora, mas coloquei na minha cabeça que iria fazer, nem que fosse só para eu ficar olhando. Se Deus quiser, no ano que vem, vai ser aberto [para o público] de novo”, afirma Dona Mundinha. Para a idosa, a montagem do presépio natalino é mais do que um simples ritual. A tradição nasceu como um sonho ainda aos cinco anos de idade.

“Quando eu era criança, saía da minha casa, até escondida da minha mãe, todos os dias para ir visitar a lapinha de uma mulher que morava lá na [avenida da] Abolição. Quando eu chegava lá, ficava perguntando o que significava cada coisa, encantada. Aí eu pensava, ‘quando eu crescer e me casar, eu faço uma lapinha na minha casa’”, relembra.

Passados cerca de 17 anos, o desejo se tornou realidade. Mas os planos não saíram exatamente conforme o planejado. Mesmo após o casamento, em 1946, Dona Mundinha precisou esperar mais um ano para realizar o sonho. O adiamento se deu porque o período em que a primeira lapinha seria montada coincidiu com a reta final da gestação do filho mais velho da aposentada, nascido em 15 de dezembro de 1946. 

No ano seguinte, com a ajuda do marido, hoje falecido, Dona Mundinha conseguiu finalmente tirar do papel o seu  sonho de criança. A lapinha, que levou em média 40 dias para ser montada, atraiu para a residência do casal — a mesma até hoje — quase todos os moradores da localidade.

Hoje, mais de sete décadas após inaugurar a tradição, a idosa diz sentir a mesma emoção ao ver o presépio montado. “O sentimento é igual ao de quando comecei, o de felicidade. Tenho muito amor por isso aqui. Às vezes eu fico sentada, sozinha, só olhando [o presépio] o dia quase todo. É o meu passatempo favorito”, conta a aposentada.

Com o passar dos anos, a montagem da lapinha se tornou uma atividade familiar. Neste ano, dona Mundinha contou com a ajuda de quatro dos seus dez filhos. Na divisão das tarefas, Tobias e Cláudio ficaram responsáveis pelas instalações elétricas e hidráulicas, pondo em funcionamento a iluminação temática e dando movimento às miniaturas que retratam o dia a dia da cidade de Belém há 2021 anos. Já Lucinda e Laísa providenciaram a decoração, orientadas sob o olhar atento e cuidadoso da mãe.

Algumas das peças utilizadas, segundo Lucinda, são guardadas desde a primeira montagem. “As pedras da gruta foram recolhidas na praia e são usadas até hoje. Tem muitos objetos também que são guardados há dez, vinte, trinta anos. Para manter tudo preservado, a gente tem o mesmo cuidado tanto para montar quanto para acondicionar as peças posteriormente”, explica. Dona Mundinha acrescenta: “Tudo é embrulhado individualmente e guardado num quartinho aqui mesmo”.

Como manda o ritual da igreja católica, a lapinha é desmontada no dia 6 de janeiro, quando se comemora o Dia de De Reis. Foi nessa data, segundo a tradição cristã, que o Menino Jesus, ainda recém-nascido, recebeu a visita dos Reis Magos. O momento marca o encerramento oficial dos festejos natalinos.

Tradição interrompida

Além da montagem do presépio, Dona Mundinha também é reconhecida por outra tradição: anualmente, no dia 25 de dezembro, ela promovia a Festa das Crianças, que após cinquenta anos sendo realizada, teve que ser interrompida em 2020 por causa da crise sanitária. “Fiquei muito triste, porque era uma coisa que eu corria atrás todo ano pra fazer. Era tão bom ver a alegria delas”, disse a idosa, emocionada.

Segundo a filha de dona Mundinha, a ideia de oferecer um momento de confraternização exclusivo para os pequenos nasceu de maneira involuntária. ”Quando a gente era pequeno, todos os anos eles [nossos pais] nos davam presentes de Natal. E na rua, tinha umas cinco crianças que não recebiam presentes e elas ficam sempre nas janelas observando a gente brincando. Quando ela [Dona Mundinha] viu aquilo, falou com meu pai e foi ao Centro comprar cinco presentes”, explicou Lucinda.

Ela ainda detalhou que a intenção de sua mãe, ao contrário do que pensavam, não era apenas distribuir os brindes. “Ela fez um bolo, fez refresco, e depois foi na casa de cada um deles e disse: ‘três horas vão lá em casa que eu tenho uma coisa para vocês’. Então essas cinco crianças vieram para cá, ela deu os presentes, o lanche, e no ano seguinte ela teve a iniciativa de pegar um caderno e sair na rua de casa em casa escrevendo os nomes das crianças para comprar os presentes e fazer a festa”, acrescentou.

Se no começo eram apenas cinco crianças contempladas, em 2019, último ano antes da pandemia, o número havia chegado a 400. Como forma de facilitar a organização e incentivar a imunização dos pequenos, o único requisito para participar do evento até a sua última edição foi a apresentação do cartão de multivacinação atualizado.

“O bacana é ver que muitas daquelas crianças que participaram das primeiras edições hoje são mães e traziam seus filhos antes da pandemia”, observa Lucinda. Ela também ressalta que além de proporcionar alegria para os pequenos, a festa era um momento de reforçar ainda mais os laços familiares. “No dia de separar esses presentes, a gente fazia um mutirão, reunindo todo mundo da família: os 10 irmãos, os 18 netos e os 6 bisnetos”, lembra.

Vacinada com as três doses do imunizante contra a Covid-19, Dona Mundinha vê progresso no combate à pandemia e acredita que em 2022 a tradição será retomada. “Se Deus quiser, no próximo ano, nessa mesma época, vamos estar recebendo os visitantes e organizando a festinha das crianças, que é uma coisa que eu quero muito voltar a fazer”, afirmou.

Encanto aos olhos, música para os ouvidos

Aprimorada ao longo dos anos, a moderna lapinha de Dona Mundinha proporciona experiência visual e sonora inesquecíveis. Rica em detalhes, a representação conta com diversos itens e adereços cuidadosamente concebidos, como o castelo de Herodes, os três reis magos, a manjedoura, casa de farinha, oficina de ferreiros, além de miniaturas de animais e bonecos que se movimentam graças às invenções elétricas desenvolvidas pelo filho da aposentada.

Também chama a atenção uma chaminé com fumaça líquida, os detalhes na iluminação, com velas e fogueiras artificiais, e as abundantes fontes de água, construídas de forma artesanal. No ritual cristão que envolve o presépio, o acontecimento mais importante ocorre à meia-noite do dia 24, quando o menino Jesus será colocado na manjedoura.

Na casa de Dona Mundinha, assim como em diversas residências Brasil afora, a cada ano, o encerrar do ciclo natalino reforça a resistência de uma tradição trazida ao País em meados do século XIX pelos colonizadores portugueses, mas que ao longo dos anos ganhou um novo significado a partir da influência do autêntico folclore brasileiro e, especialmente, do artesanato nordestino, muito influenciado pela fé dos católicos, assim como a personagem dessa brilhante história.

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