Um suposto caso de intolerância religiosa registrado no município de Uruburetama, a 125 quilômetros de Fortaleza, ganhou forte repercussão nas redes sociais. O crime é atribuído à secretária municipal de Turismo e Cultura, Fernanda Carneiro, que teria ordenado a interrupção da apresentação de uma quadrilha junina por considerar "macumba" a performance do grupo. O episódio ocorreu no último domingo, 19, durante um festival junino promovido pela Prefeitura Municipal.
Na apresentação, a quadrilha “Trem Maluco” fazia uma homenagem a Santa Dulce dos pobres, natural da Bahia. De acordo com um dos integrantes do grupo, que pediu para não ser identificado, a secretária teria manifestado irritação ao perceber que havia uma ala das baianas na quadrilha. “[Ficou] dizendo que era uma falta de respeito trazer macumba para dentro de uma festa religiosa [...] e que queria que parasse, pois quem mandava ali era ela", relatou.
Mesmo com o constrangimento, a apresentação continuou. No fim do evento, os integrantes da quadrilha tentaram explicar ao público a proposta da dança, mas teriam sido impedidos pela organização do festival. Segundo o integrante do grupo, a secretária também solicitou aos responsáveis pelo evento a exclusão dos arquivos audiovisuais que teriam registrado as cenas do possível ato de intolerância religiosa.
Na segunda-feira, 20, um dia após a apresentação, a quadrilha divulgou uma nota de repúdio nas redes sociais. “Nada justifica tamanha falta de respeito com nossos membros e com o público presente que presenciou toda a cena lamentável. [...] Ficamos muito mais tristes em saber que isso partiu das nossas próprias autoridades da cidade”, diz trecho do texto. “As religiões de matrizes africanas são parte da nossa história e da nossa cultura, precisamos entender e respeitar”, continua.
Após a repercussão negativa, a Prefeitura de Uruburetama também se pronunciou sobre o caso. Em nota de esclarecimento, a gestão pediu desculpas e lamentou a ocorrência do episódio. Também disse não compactuar com qualquer tipo de preconceito ou intolerância e se dispôs a dialogar com os membros da quadrilha para "amenizar o desconforto entre as partes envolvidas direta e indiretamente". A nota, no entanto, não faz nenhuma menção à secretária.
O caso traz à tona mais uma vez a discussão sobre intolerância religiosa, prática considerada criminosa pela legislação brasileira desde 1997. No Brasil, as religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé, são as mais atacadas. Para o doutor em sociologia e professor de Teoria Política da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Emanuel Freitas, a rejeição a essas práticas religiosas é resultado de um processo histórico.
“Isso se deve ao fato de o Brasil ter sido colonizado por uma coroa que era católica-cristã. Os valores que se firmaram na sociedade foram os do cristianismo. E o cristianismo é uma religião de salvação, nesse sentido não cabe outro culto, outra divindade, outra experiência religiosa que não seja a cristã”, pontua. O professor também ressalta que há muito tempo existem grupos católicos e evangélicos que relacionam as religiões originárias do continente africano a práticas demoníacas.
A Mãe de Santo Kelma de Yemoja, integrante de um terreiro de candomblé, localizado no bairro Bom Jardim, sabe bem o que é ser discriminada por causa da religião. Entre os inúmeros episódios de intolerância dos quais já foi alvo, ela relembra um que considera mais grave pelo grau de exposição de sua imagem.
“Em agosto do ano passado eu fui convidada para um evento com o ex-presidente Lula durante uma visita dele ao Ceará. No encontro, fiz todos os rituais, entoei uns cânticos e até entreguei um colar para ele [Lula]. Dias depois, fui surpreendida com minha imagem circulando na internet com mensagens de que Lula estava recebendo as bênçãos do demônio, entre outros xingamentos e ofensas”, detalha. A imagem foi veiculada pelo vereador bolsonarista Nikolas Ferreira, de Belo Horizonte (MG), e alcançou milhares de compartilhamentos.
Na avaliação de Mãe Kelma, que também é assistente social e coordenadora da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro), o caso registrado em Uruburetama tem um agravante a mais devido ao perfil de quem teria praticado a intolerância. “Uma pessoa que ocupa um cargo dentro de uma secretaria de Cultura não pode agir assim. Cultura é diversidade, respeito, é onde não cabe nenhum tipo de discriminação ou intolerância”, ressalta.
O POVO procurou a secretária municipal de Turismo e Cultura de Uruburetama, Fernanda Carneiro, por meio da assessoria de imprensa da Prefeitura, para ouvir a versão da agente pública sobre o caso, mas havia recebido resposta até a publicação desta matéria. A reportagem também perguntou à Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) se o caso será investigado pela Polícia Civil, mas igualmente não obteve retorno. (Colaborou: Euziane Bastos)