Em comparação ao medo que o mundo inteiro estava vivendo há dois anos, até parece que a pandemia acabou. Nas ruas, nos ônibus e nas empresas, as pessoas já estão autorizadas a tirarem as máscaras - se quiserem -, a sentarem-se umas do lado das outras e a curtir a vida com mais tranquilidade do que era possível em 2020 e em 2021.
Mesmo assim, o cenário pandêmico segue existindo. Ainda há casos de Covid-19, sem contar as incertezas sobre os reais efeitos das sequelas do coronavírus. Talvez por isso, continua sendo relevante voltar as atenções para uma das maiores inovações cearenses desse período caótico: o capacete Elmo.
Criado ainda em 2020 e testado clinicamente pela primeira vez em junho daquele ano, no Hospital Leonardo da Vinci (em Fortaleza), o Elmo foi eleito o melhor caso de inovação do Brasil pelo 9º Congresso de Inovação da Confederação Nacional da Indústria (CNI), maior evento de inovação da América Latina.
Dados preliminares da pesquisa ELMO Registry, feita pela Gerência de Pesquisa em Saúde da Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP/CE), indicam que 66% dos pacientes que utilizaram o capacete não apresentaram a necessidade de intubação. O estudo considerou cerca de 1.570 fichas médicas de pacientes internados entre novembro de 2020 e novembro de 2021 em dois hospitais da Capital.
O estudo ainda segue até o final do ano, mas a ESP/CE já comemora o sucesso do equipamento, autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) desde outubro de 2020. O próximo objetivo é solicitar ao Ministério da Saúde (MS) a incorporação do capacete ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Para relembrar o processo de criação do Elmo, O POVO conversou com o pneumologista Marcelo Alcântara, superintendente da ESP/CE e médico à frente do projeto. Apesar de ser um dos nomes mais lembrados sobre os bastidores do capacete, Alcântara reforça a imensidão do trabalho em equipe crucialmente necessário para desenvolver um equipamento desses em tão curto tempo. Em março deste ano, a equipe recebeu a Medalha da Abolição, mais alta honraria concedida pelo Governo do Ceará, em reconhecimento ao serviço.
A primeira vez que a ideia de fazer um capacete para viabilizar a oxigenação de um paciente surgiu em abril de 2020. À época, o Ceará já registrava 30 óbitos no começo do mês, fechando abril com 956 mortos. Os dados são do portal IntegraSUS, da Secretaria de Saúde do Ceará (Sesa). Nesse mês, a Câmara de Inovação da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) contatou Marcelo para convidá-lo para uma reunião que almejava recolher ideias para projetos inovadores voltados para o combate à pandemia.
Além da Funcap e da ESP/CE, representantes da Universidade Federal do Ceará (UFC), da Universidade de Fortaleza (Unifor), da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) integravam a mesa.
A maioria imaginava desenvolver uma espécie de ventilador mecânico, mas o pneumologista discordava. Era complexo demais e o mais curto dos prazos tomaria dois anos de trabalho. Em contrapartida, Alcântara sugeriu fazer um capacete, inspirado em um estudo estadunidense de 2016. Todos concordaram, e na semana seguinte a força-tarefa já estava mobilizada em fazer a ideia acontecer.
Após as primeiras reuniões, foram necessárias apenas oito semanas de trabalho intenso para chegar ao Elmo. Ao todo, foram desenvolvidos oito protótipos, o primeiro criado já no dia 17 de abril, na Unifor. Em maio, o Senai criou o Laboratório Elmo, possibilitando mais testes. O último protótipo ficou pronto no dia 20 de junho de 2020, quando o Ceará lamentava a perda de 6.770 vidas para a Covid-19.
Três dias depois, a paciente Maria Irismar Morais, então com 70 anos, foi a primeira a receber o Elmo nos testes clínicos. Ela estava internada com insuficiência respiratória por causa da Covid-19 na enfermaria do Hospital Leonardo da Vinci, onde permaneceu por 13 dias. “Passei cinco dias estabilizada, nem ficava boa, nem melhorava. Quando de repente chegou a equipe do capacete Elmo. Eu o chamo de capacete da minha salvação. Com dois dias eu já estava recuperada”, relata, no site oficial do Elmo.
Em outubro de 2020, a décima e última paciente integrante do teste clínico usou o capacete. No total, sete dos dez pacientes que usaram o Elmo não precisaram ser intubados; uma perspectiva animadora frente aos 10.274 cearenses vitimados pela doença até então.
No final daquele mês, a Anvisa autorizou a empresa Esmaltec - que tinha entrado como parceira do projeto - a comercializar o Elmo. Até 2022, já foram doados 2.392 capacetes ao SUS cearense, enquanto 2.214 profissionais foram treinados para utilizar o Elmo adequadamente. Entre os vários benefícios do equipamento, estão o conforto para o usuário e a vedação garantida pelo design, permitindo que os pacientes fiquem sem máscara.
“Eu me sinto melhor como ser humano”, orgulha-se Alcântara ao relembrar do trabalho. “E eu compreendi muito bem o que é o processo de inovação e a rede extremamente forte de diversos saberes (envolvida no inovar)”, afirma. Para ele, é essa partilha de conhecimento e a parceria entre diversas instituições e especialidades - como médicos, engenheiros, designers e comerciários - a verdadeira responsável pelo avanço da ciência para salvar vidas.
A equipe do Elmo continua trabalhando para aperfeiçoar o equipamento e compreender as taxas exatas de eficácia dele. O estudo analisando as fichas médicas de pacientes que usaram o capacete segue até o final de 2022.
Com os resultados dele, a Esmaltec poderá entrar com solicitação ao MS para integrar o Elmo ao rol de ferramentas do SUS, garantindo o escoamento dele por todo o Brasil. Enquanto isso, os hospitais já podem, individualmente, comprar o equipamento ou solicitar doações.
O pneumologista também afirma que estão estudando uma maneira de “juntar” o Elmo a um ventilador mecânico. Com isso, seria possível se beneficiar dos indicadores mais calibrados do ventilador.
Além disso, já existe um projeto em desenvolvimento para criar um museu itinerante do Elmo. “Ele foi muito bem recebido pela sociedade. A ideia é fazer um registro bonito e pegar os depoimentos das pessoas que o usaram, criar uma memória que possa ser nova”, comenta. Uma exposição virtual também está na proposta.
O ventilador mecânico é uma máquina complexa. Usa energia elétrica e tem um computador embutido. Ele é utilizado em cenários que o paciente precisa ficar inconsciente, com um tubo inserido na traqueia.
Já o Elmo é um capacete adaptado a um sistema de gases, que não precisa de energia elétrica nem intubação. Ele só pode ser utilizado por pacientes que conseguem permanecer acordados e colaborativos.
O objetivo do Elmo é melhorar a condição respiratória e evitar intubações, enquanto o ventilador mecânico é um equipamento usado já em pacientes intubados.