Dedicar um número expressivo de horas do dia ao celular, ao tablet ou a outros aparelhos digitais. Quando esse hábito vira rotina, é sinal de que o usuário já está dominado pela tecnologia. Essa dependência a dispositivos eletrônicos pode ser o catalisador para a "demência digital" — estado mental que leva a problemas como perda de memória e que apresenta uma ameaça ao intelecto das gerações futuras.
O termo "demência" é usado para descrever sintomas que afetam significativamente a memória de uma pessoa, sendo normalmente associado a patologias como a doença de Alzheimer. Segundo estimativas do Ministério da Saúde (MS), em 2022, 2 milhões de brasileiros viviam com alguma forma da doença.
Já a denominação "demência digital" ficou conhecida por meio do psiquiatra alemão Manfred Spitzer, que em 2012 publicou um livro falando sobre como o uso excessivo de tecnologia digital pode impactar o desenvolvimento cerebral humano. O trabalho tinha como foco de abordagem crianças e adolescentes.
O pesquisador apontou que o mau uso dos dispositivos eletrônicos diminui o rendimento cognitivo dos usuários. De acordo com o alemão, as consequências dessa prática ao cérebro seriam irreversíveis.
O estudo de Spitzer guiou outras pesquisas e atualmente o termo já ganha derivados, sendo conhecido também como "sobrecarga digital" ou "intoxicação digital". Conforme o psiquiatra Bráulio Brandão Rodrigues, a condição não é classificada pelos órgãos de saúde como uma doença, sendo mais próxima de um estado mental.
"(A demência digital) É um estado onde a pessoa se sente sobrecarregada e com dificuldade de lidar com o excesso de informações ou a quantidade excessiva de estímulos quando expostas ao meio digital. Pode afetar a saúde mental e trazer graves repercussões a vida da pessoa", explica o especialista.
Segundo Brandão, a "sobrecarga" pode ser acompanhada de uma constante tensão, pressão em estar sempre online, problemas de sono e uma dificuldade de concentração, desencadeando ainda problemas como ansiedade e depressão.
A condição também pode afetar a memória. De acordo com Antônio Araújo, neurocirurgião que atua no Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo, os aparelhos digitais aceleram o processo de perda de neurônios, que ocorre na região do hipocampo, responsável por converter as informações em lembranças.
"Todos os dias perdemos cerca de 700 neurônios; dependendo dessa exposição à tela, você acaba acelerando mais esse processo, e, aí sim, essa perda neuronal vai fazer falta", diz o médico, destacando que esse é um processo gradual, que ocorre após 20 a 30 anos de uso dos dispositivos.
Sinais da demência digital
Fonte: Psiquiatra Bráulio Brandão Rodrigues
O indivíduo em "demência digital" pode sofrer consequências em áreas importantes. Conforme o psiquiatra Bráulio, o vício nas redes pode interferir, por exemplo, nas relações pessoais.
"Nas mensagens digitais, não necessariamente a pessoa consegue expressar aquilo que ela gostaria de falar. O outro lado que recebe a mensagem pode não entender na mesma tonalidade que a pessoa enviou. Isso pode levar a muitos problemas, como discussões em redes sociais, e acabar trazendo um distanciamento ou a quebra de vínculos que antes era melhor estruturado na vida pessoal", pontua.
Além disso, o especialista explica que a pessoa que tem uma relação de necessidade com a tecnologia fica mais suscetível a manter conexões online, afastando-se das experiências reais e se isolando.
Já na área profissional, o psiquiatra destaca que a pessoa com demência digital pode ter dificuldade em se concentrar em reuniões, em se focar em tarefas mais objetivas, além de se sentir pressionada e ficar suscetível a desenvolver a síndrome de burnout — distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema.
"Ela pode estar constantemente tensa, devido a alguma pressão por estar sempre online ou estar sempre disponível. Pode também apresentar perda de produtividade. Ela se torna menos eficaz na conclusão de tarefas, pela constante distração, pode ter problemas de sono pelo uso dos aplicativos, que pode levar a problemas como insônia ou dificuldade de relaxar", pontua o especialista.
A necessidade de usar os aparelhos eletrônicos pode vir em forma de "vício" ou de "dependência". De acordo com o psiquiatra Brandão, ambos os casos levam a demência digital.
Conforme especialista, o vício digital se refere ao comportamento compulsivo e repetitivo de usar dispositivos eletrônicos ou outros aparelhos. Comportamento esse que pode virar compulsivo, trazendo consequências negativas na vida da pessoa e afetando a vida profissional e pessoal dela.
Já a dependência digital é mais grave, porque além desse uso excessivo, a pessoa começa a desenvolver uma dependência emocional e psicológica aos meios eletrônicos. "O fato dela estar desconectada da internet pode gerar graves sintomas de ansiedade, (ou até mesmo) de sentir abstinência", explica.
Brandão também aponta que o desenvolvimento desses quadros passa por "características individuais de cada pessoa, de fatores ambientais" e até mesmo como ela lida com a questão do controle de impulsos. "Pessoas com vínculos mais próximos também tendem a ter um fator de proteção quanto a desenvolver demência digital", pontua o psiquiatra.
Os adultos não são os únicos a estarem expostos aos riscos trazidos pelo uso excessivo das telas, já que crianças e adolescentes também podem sofrer graves consequências com a exposição constante aos aparelhos. Para estabelecer limites de uso, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a Academia Americana de Pediatria sugerem que até os dois anos de idade a utilização de dispositivos deve ser zero.
"É fundamental para o desenvolvimento cerebral e psicomotor de crianças pequenas que elas tenham contato com a terra, que elas corram, tenham estímulos visuais e auditivos e o desenvolvimento de sinapses, que são as comunicações dos neurônios, que são as células cerebrais que se dão de uma forma exponencial nessa faixa etária; daí a necessidade de estímulos para o desenvolvimento dessas comunicações entre as células", explica Eduardo Jorge, neuropediatra da Clínica Neurovida.
"Com relação a adolescentes, o uso excessivo de telas dificulta o relacionamento social e a formação da personalidade. Sabemos que o uso excessivo das mídias pode levar a uma série de doenças novas como a nomofobia, que é a fobia de ficar sem o celular, síndrome do toque fantasma, que é uma excessiva preocupação com a utilização, com o toque do celular, a necessidade de ter conexão", completa.
Para a psicóloga clínica Andreia Soares Calçada, o ideal é que o acesso a internet ocorra a partir dos 9 ou 10 anos, de forma supervisionada. Ela destaca que o meio digital pode possibilitar acesso a pesquisas e a conteúdos, mas também apresenta um mundo irreal, que causa transtornos como ansiedade e depressão.
Além disso, a especialista cita que o uso excessivo de aparelhos gera uma sensação de imediatismo, que é diferente do aprendizado comum. Isso pode comprometer a criatividade das crianças, afetar o pensamento crítico e fazer elas perderem "a paciência em investir em algo mais demorado para ser assimilado".
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"A demência digital pode ocorrer, pois a posição muito passiva da criança e dos adolescentes frente às telas movimenta pouco o cérebro, como acontece com o idoso. Os focos são direcionados para o momento. Na hora de ir para a escola e prestar atenção ou ler um texto maior, não desenvolvem ou perdem a capacidade de memorização ou ampliação do vocabulário", pontua.
Ainda de acordo com a especialista, que atende crianças e adolescentes, é fundamental que os pais de indivíduos desse grupo conversem com seus filhos e que limitem o uso de tecnologia, utilizando meios como aplicativos que delimitam o tempo de utilização das redes sociais. "É importante que isso seja feito desde o início porque mais tarde, o confronto é muito pior", destaca a especialista.
Sinais que apontam um vício de crianças e adolescentes
Fonte: Psicóloga Andreia Soares Calçada
Apesar dos estudos e de alertas feitos por pesquisadores, o consumo excessivo desses dispositivos segue se arraigando em alta velocidade em países como o Brasil. Conforme relatório da plataforma AppAnnie, brasileiros utilizaram o celular por 5,4 horas por dia em 2021, a maior média registrada dentre as nações estudadas.
Foi o segundo ano em que o País liderou o ranking de uso de celular em horas diárias. Já no início de 2023, um balanço da Comscore apontou que o Brasil configura em terceiro lugar dentre as nações que mais consomem redes sociais. YouTube, Facebook e Instagram são as redes que mais foram acessadas pelos usuários, com alcance de 96,4%, 85,1% e 81,4%, respectivamente
Conforme o psiquiatra Bráulio Brandão, esse uso excessivo das redes já está tendo consequências no Brasil. Como exemplo, ele cita a frequência de casos de cyberbullying, a exposição de dados e a disseminação de fake news, relembrando a polarização política enfrentada pelo País nos últimos anos.
Para dar um "freio" nessa situação e evitar indivíduos com demência digital no futuro, o especialista diz que é importante criar a cultura do "uso saudável da internet". Isso, no entanto, passaria por desafios como a falta de conscientização, negligência da população sobre saúde mental e rápidos surgimento das tecnologias, o que dificulta a regulamentação delas.
"Superar esses desafios requer uma abordagem mais integral da pessoa e nem sempre associada a órgãos de saúde, mas também aos educadores, pais, empresas de tecnologia, comunidades e até o próprio indivíduo. A conscientização e o desenvolvimento dessas estratégias são os principais passos para o controle da demência digital e a promoção de uma saúde mental digital", destaca o psiquiatra.
Enquanto essas dificuldades não são superadas, o futuro que se desenha no horizonte preocupa especialistas. De acordo com o neurologista Antônio Araújo, o impacto das telas, como a aceleração da perda neuronal, vai trazer consequências de forma ainda mais grave daqui a 20 ou 30 anos.
Como "desacelerar" e prevenir a demência digital:
Fonte: Psiquiatra Bráulio Brandão Rodrigues
O tema desta inforreportagem foi escolhido por professores que compõem a banca do Concurso “Redação Enem: chego junto, chego a 1.000”, uma realização da Fundação Demócrito Rocha em parceria com a Seduc-CE. A partir deste tema, estudantes da 3ª série do Ensino Médio e da Educação de Jovens e Adultos (EJA) das escolas públicas estaduais são convidados a escrever uma redação no modelo dissertativo-argumentativo, o exigido no Enem. A publicação das 5 inforreportagens, referentes aos 5 temas do concurso, foram publicadas nas últimas 5 quartas-feiras.