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Ricos ou pobres, todos se encontrarão com Valdez, o coveiro
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Ricos ou pobres, todos se encontrarão com Valdez, o coveiro

Francisco Valdez Vieira de Souza é coveiro há 25 anos do São João Batista, o maior cemitério de Fortaleza. Nunca viu assombração. E não gosta de lembrar dos tempos difíceis da pandemia. "Eram 20 sepultamentos por dia", às vezes até à noite
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FRANCISCO Valdez está há 25 anos a sepultar gente (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal FRANCISCO Valdez está há 25 anos a sepultar gente

Lidar com a morte é rotina e sustento de Francisco Valdez Vieira de Souza, 52 anos. A matada, a morrida, sofrida ou inesperada, a de quem dormiu e não acordou, de quem mergulhou na tristeza, a chaga de um ou a praga que arrebatou milhares num passado muito recente.

"A morte? Todo mundo tem que passar, né", simplifica, do que é o seu entendimento sobre o fenecer, desviver, desencarnar, o que é o inevitável. Valdez tem senhoridade, lugar de fala. Hoje ele é o coveiro mais longevo do maior e mais antigo campo-santo de Fortaleza. O cemitério São João Batista, um grande lote situado entre os bairros Centro e Jacarecanga, data de 1866. É de quando o Brasil ainda era uma colônia de Portugal, de uma cidade que nem se cogitava metrópole.

A história de Valdez nessa lida é o tempo de quase a metade de sua vida. Ele está há 25 anos a sepultar gente rica e gente pobre, importantes e anônimos, os de posse ou quem tem pouco, de toda estirpe e patrimônio, mas que findam num mesmo destino. Entre jazigos imponentes e suntuosos ou nas covas mais simples do pé de muro do local, todos terminam igualmente a sete palmos da terra, como ele define.

Valdez entende seu trabalho
como "normal", "digno", "necessário", de relevância. Assiste ao choro dos familiares com respeito, mas tem a tarefa pragmática daquele momento de dor. Fechar a gaveta, selar a despedida com areia e cimento. Tanto que suas principais ferramentas são a colher de pedreiro e a pá.

Era o ano 2000 quando Valdez se viu na atividade quase num acaso. Antes, trabalhara como servente de pedreiro e agricultor nos roçados da família em Canindé, sua terra natal no Sertão Central cearense. Era ainda construtor de túmulos, quando passou ao ofício titular de abrir e fechar e guardar os caixões nas sepulturas. Nunca havia se imaginado.

O convite foi sugestão de um cunhado, que também atuou como coveiro por três décadas. Valdez foi aceito e assumiu a vaga de seu Luis Moraes, que se aposentava após 41 anos na profissão e era até então justamente o que mais se perpetuava no quadro de enterradores do SJB. Herdou o posto e mantém-se na
longa permanência.

Ele é um dos seis coveiros atuais do SJB. Vários outros funcionários fazem serviços de jardinagem e manutenção do ambiente. O cemitério é comparável a uma cidade, de suas tantas ruas e alas. São cerca de 15 mil jazigos numa área de nove hectares. Enterram-se todos os credos: católicos, protestantes, umbandistas e candomblecistas, judeus ou ateus.

Segundo a assessoria da Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza, gestora do SJB, a pessoa só é sepultada se a família tiver um jazigo. Mas há vagas para venda. Não há mais enterros de indigentes, como acontecia até a década de 1980.

A média de enterros/dia é variável, segundo ele. "Às vezes dá três, quatro. Tem dias que são de oito a dez". Quando conversamos, iria para o terceiro daquela manhã. Nunca enterrou um parente seu. "Mas alguns colegas daqui, sim. Não é bom".

Cada sepultamento é igualmente importante na sua explicação, mas nenhum momento foi mais desafiador que o da pandemia da Covid-19. De quando precisou trabalhar por horas seguidas, num cemitério vazio, isolado, sem que pudessem velar nem chorar o morto. Foi um direito tirado pelo risco da situação. Valdez dá seu testemunho: nunca houve um tempo mais difícil que aquele. "Eram mais de 20 sepultamentos por dia".

Lembra que trabalhava mais de 12 horas por dia. Era obrigado a usar roupas especiais, de plástico, mais luvas e máscaras, sem qualquer ponto de contato com a vítima da doença. E o paramento devia ser trocado totalmente a cada nova pessoa a ser enterrada. Sob um calor sem sombra, em silêncio. Um desconforto na alma, talvez, mais que o físico. Muitos dos sepultamentos aconteceram à noite, dada a quantidade de mortos. Não gosta de relembrar.

Mesmo protegido, Valdez não escapou e também entrou nas estatísticas, contraiu o vírus em 2021. Ficou uma semana internado. "Tive forte (o quadro de sintomas). Passei dez dias em casa com febre, depois fui internado com falta de ar. Foi difícil", recorda-se.

Na pergunta sobre algo mais curioso que já tenha visto ou presenciado, ele se antecipou. "Esse negócio de assombração, que o pessoal fala, isso nunca vi, nunca vi", enfatizou. Já presenciou muita briga de familiares no momento que deveria ser de consideração. Lembra de uma entre ciganos que se engalfinharam justo quando o corpo estava sendo colocado na cova. "A mulher tacou a bengala na cabeça do outro e a confusão começou. Parece que não se davam muito bem".

Valdez é tranquilo, de fala pouca, baixa. Mora sozinho, não tem filhos. Diz que até gosta de casamento, mas os seus dois "não deram certo". Chegou a estar solteiro por sete anos, antes de conhecer sua namorada atual, Maria Jéssica, com quem está há quatro anos. É um homem silencioso, mas solícito. Chegou a dizer que nem teria algo interessante para contar. Mas todos temos.

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