A Praia de Iracema, um dos bairros mais simbólicos de Fortaleza, completa 100 anos neste mês de maio. Muito além de um cartão-postal, é território de memórias afetivas, resistência cultural e transformações urbanas. Entre casarões antigos, pescadores, artistas e novos empreendimentos, pulsa uma comunidade que carrega em si o passado e o futuro da Cidade.
O bairro abriga alguns dos principais equipamentos culturais do Estado, como o Centro Dragão do Mar, a Biblioteca Pública Estadual, o Porto Iracema das Artes e a icônica Ponte dos Ingleses. Nas ruas, convivem bares, boates, restaurantes e centros de lazer, reforçando a vocação artística e turística da região.
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O bairro já teve diversas denominações, como Praia do Peixe e Praia Formosa — nomes que refletiam o cotidiano da comunidade pesqueira local e o escoamento de mercadorias pelo porto. A mudança para Praia de Iracema aconteceu oficialmente em 1925, após um concurso popular que escolheu o nome em homenagem à personagem indígena criada por José de Alencar, símbolo da origem mítica do Ceará.
Com a nova designação, as ruas do bairro passaram a receber nomes de etnias indígenas, como Tabajaras, Pacajus, Arariús, Potiguaras, Groaíras, Cariris, Tremembés e Guanacés. A jornalista Adília de Albuquerque foi uma das idealizadoras da proposta de erguer, à beira-mar, um monumento à heroína literária, celebrando o imaginário cearense.
Sérgio Rocha, conhecido como Serginho, é geógrafo, historiador e guia do “Rolé Expresso da Draga”, passeio guiado pelo Poço da Draga — comunidade que integra o bairro. Criado ali, ele destaca o vínculo “visceral” dos moradores com o território. O projeto promove a valorização da história local com roteiros que misturam dados técnicos e memórias afetivas.
O “Rolé” promove a educação patrimonial da região por meio da valorização da história local do Poço da Draga e adjacências. Também à frente do “Rolé na PI”, ele conduz roteiros que unem dados técnicos, geográficos e históricos a memórias vivas compartilhadas por guias como Celino Rocha e Ana Célia Rocha, moradores com mais de 50 anos de vivência na área. “Eles são os verdadeiros arquivos vivos da PI”, diz Sérgio.
Segundo Sérgio, a ocupação da área se deu por populações marginalizadas, muitas delas vítimas das grandes secas que assolavam o interior do Ceará, como as de 1877 e 1915. “Sem ter para onde ir, essas pessoas encontraram abrigo em uma área à beira-mar que, à época, era vista como indesejada pela elite da cidade”, explica.
A urbanização da Praia de Iracema teve como principal marco a transferência do porto, antes localizado próximo à Ponte Velha (Ponte Metálica). Nos anos 1920, a praia passou a ser vista como espaço de lazer e veraneio, com a construção de bangalôs no estilo inglês. A presença do porto, porém, não contrastava com essa nova vocação, levando à sua mudança para o Mucuripe, explica o geógrafo.
A construção do espigão no Mucuripe causou acúmulo de areia na região, formando a Praia Mansa, e agravou a erosão marinha na Praia de Iracema, que perdeu várias construções nas décadas seguintes. Para conter os danos, novos espigões foram erguidos, como o da João Cordeiro, além de aterramentos.
Nos anos seguintes, ações de requalificação pública e privada transformaram o cenário, atraindo novos moradores e impulsionando o turismo local.
O bairro é delimitado pelas ruas João Cordeiro, Monsenhor Tabosa, Almirante Jaceguai, Almirante Tamandaré e avenida Beira-Mar. Com área territorial de apenas 37 hectares, é o terceiro menor bairro de Fortaleza, mas certamente um dos mais simbólicos.
Nos anos 1990, a Praia de Iracema ressurgiu como reduto boêmio e criativo, com bares, arte de rua e movimentos culturais.
Camila Melo, body piercer e empreendedora de 43 anos, frequenta o local desde 1995 e relembra como o bairro foi cenário de amizades, violões na ponte e noites intensas em espaços culturais antigos, como o Bar do Canuto e o Cais Bar.
"Eu tinha 13 anos, morava no Conjunto Industrial, e era uma caminhada longa até aqui — mas, mesmo assim, vinha pelo menos uma vez por semana", destaca Camila.
Hoje, moradores como a servidora pública, Ana Gabriela, de 39 anos, que vive no entorno da Beira-Mar há oito meses, encontram no bairro um lugar de reencontro. Mãe de um menino de 13 anos, ela compartilha com ele momentos diários nas pedras próximas à ponte. “Estar ali é um ritual de conexão com a maternidade e a espiritualidade”, finaliza ela.
As avenidas da orla se tornaram ponto de encontro para quem busca bem-estar. O piauiense Leonardo Melo, medico angiologista, corre há dois anos na orla da praia. Vindo de Teresina, ele diz ter se “encantado pela união entre natureza e urbanidade”. A Praia de Iracema, para ele “é um cenário inspirador”, completa dizendo.
Aos 100 anos, a Praia de Iracema continua viva não apenas por suas paisagens, mas por quem a habita. É nos moradores, nas histórias contadas com brilho nos olhos, nos frequentadores que a elegem como refúgio, que mora a força desse território. Preservar a Praia de Iracema é reconhecer nela a figura da “mãe Iracema”: a que acolhe, ensina e resiste.