Acessando novas formas de afetos e potencializando relações que vão além das românticas, a Geração Z vem ressignificando comemorações de datas ditas tradicionais, entre elas o Dia dos Namorados. O evento, celebrado no Brasil no dia 12 de junho, às vésperas do Dia de Santo Antônio, foi criado não com o intuito religioso, mas com um objetivo comercial: aquecer as vendas durante um dos meses antes mesmo rentáveis.
Nativos digitais e atravessados por uma pandemia de Covid-19, jovens nascidos entre 1995 e 2010 revelam que passaram a respeitar a própria liberdade individual, desapegando da ideia de controle e possessividade costumeiramente associados às uniões amorosas. “Acho que todas as relações necessitam do amor, carinho, conversa, compromisso, e não somente as relações românticas”, explica a bióloga Victoria Souza.
Há sete anos, ela vive um relacionamento aberto com o professor de Biologia, Felipe Amaral. A dinâmica do casal, formada por acordos que respeitam os desejos de ambos, floresceu da curiosidade e da inquietude em aceitar uma relação livre, entendendo que “amar mais de uma pessoa é possível, então por que isso também não se estende para o amor romântico?”, refletem.
Para Victoria e Felipe, a forma como as relações foram construídas ao longo do tempo estabelece uma narrativa muito individualista e que as pessoas devem ser livres para fazer suas escolhas e viver suas vidas para além da instituição “casal”.
“A ideia de que todas as nossas vontades, os nossos desejos e nossos sentimentos sejam controlados ou guiados por uma única relação muitas vezes nos adoece e priva a gente de estabelecer conexões mais profundas e reais com outras pessoas", afirma Victoria. "Acreditamos que essas outras formas de se construir as relações ajudam a gente a ver o mundo de uma forma mais coletiva”.
Alinhando suas visões românticas, políticas e sociais, o casal avalia que o Dia dos Namorados está mais ligado a uma questão comercial que ao relacionamento em si. Além disso, Felipe pontua que o dia “pouco contempla outras formas de se relacionar, já que todo o marketing da data é feito com casais cis heterossexuais em relação monogâmica”.
A visão é compartilhada pela produtora cultural Eric Magda Lima, 29. A artista também avalia que a data reflete mais questões publicitárias que afetivas. “Eu fui criada por mães que me falaram que aniversário é todo dia, que Dia das Mães é todo dia; então, para mim, Dia dos Namorados é a mesma coisa. Só que eu não tenho dinheiro todo dia para fazer algo especial”, conta.
Para ela, a data acaba se tornando especial por outro motivo: é comemorada um dia após o aniversário de seu noivo, Noah Lourenço, 27. Juntos, o casal compartilha as alegrias e os desafios de uma relação não-monogâmica há pelo menos cinco anos.
“Uma das maiores razões da monogamia, dos casamentos em si, é uma logística financeira. Historicamente, tem também um lance de machismo, que as mulheres só saiam da família quando casavam. Então, hoje em dia, com essa lógica de independência e responsabilidade própria, as pessoas compreendem que um casamento não é para ser uma nova configuração da vida que a gente tem com a família, mas para ser algo seu”, completa.
Para a pesquisadora Larissa Amaral, de 26 anos, sua visão sobre relacionamentos mudou ao longo dos seus dez anos de união. “É uma coisa que eu tenho me questionado: o que significa namorar para mim? Antes, existia uma visão muito fechada do que era isso. Meu namorado era o centro da minha vida e tudo passava por ele. Ele sempre tava como prioridade nas minhas relações. Hoje não tem mais isso, eu tento enxergar minhas relações de uma forma mais horizontal”, conta.
Ela revela que essa vivência permitiu com que ela se sentisse muito mais livre para expressar afeto. Estando em uma relação não-monogâmica, a pesquisadora abraça a ideia de construir uma família, comprar uma casa e viver outros planos considerados mais tradicionais.
Para ela, o mais importante em uma relação é a comunicação. “Hoje eu consigo ser muito mais carinhosa com meus amigos, com as pessoas com quem eu me relaciono; porque eu me sinto livre para ser o que eu quiser ser e sentir o que eu quiser sentir”, acrescenta.
Sobre o Dia dos Namorados, Larissa revela que a data nunca fez muito sentido para ela, mas avalia que toda forma de demonstrar afeto é válida, mesmo nesse dia.
“É uma data muito comercial. Toda essa conversa sobre não-monogamia tenta descolonizar. A monogamia foi trazida para a gente, é uma construção social. E o capitalismo força muito isso também, toda a indústria do casamento e tal; mas toda forma de demonstrar amor é válida. É muito bonito”.
Uma pesquisa realizada pela Ipsos, divulgada em fevereiro deste ano, revelou que 58% dos entrevistados da Geração Z afirmaram estar satisfeitos com a sua vida romântica e sexual. Destes, 75% se expressaram como satisfeitos ao serem questionados sobre se sentirem amados.
Especialista em relacionamentos, Patrícia Marinho destaca que cultura, meio ambiente, genética e dinâmica familiar são fatores que moldam as formas como nos relacionamos. “A liberdade é uma marca muito forte (...) Essa nova geração viu o desgaste dos pais, muitos crescidos em lares marcados por ausência emocional e sobrecarga materna. A maioria foi criada por mulheres, já que, diante de dificuldades, é comum o homem se afastar da relação. Isso tudo deixa marcas profundas na forma como se vê e se vive o amor”, ressalta.
Professor titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), João Ilo Barbosa destaca que a pandemia acelerou o processo de digitalização de algumas atividades sociais, entre elas a construção de relacionamentos românticos, especialmente na Geração Z, que já cresceu muito envolvida no ambiente virtual.
Ele também ressalta o valor que a Geração Z atribuiu ao respeito à liberdade individual na hora de se envolver romanticamente. “Nada que vá contra essa liberdade individual é tão valorizada. Não há aquela preocupação de: ‘eu preciso me comprometer com uma pessoa, de ser fiel a ela, de manter uma vida juntas e, para isso, eu tenho que negar algumas coisas para mim mesmo em prol do outro’”.
João Ilo reforça a importância de aprimorar o diálogo para assegurar acordo e o respeito à saúde emocional dos envolvidos. “Você precisa expressar claramente o que você pensa, o que você sente. É o que a gente chama de assertividade. A capacidade de dialogar, a capacidade de lidar com diferenças e a questão da tolerância com o outro. Tem a questão também de você, digamos, relativizar os seus direitos e a sua liberdade com o do outro”.