O número de pacientes pediátricos (até 17 anos de idade) à espera de um transplante de órgão mais que dobrou no Ceará entre os anos de 2023 e 2024. De acordo com o Relatório Brasileiro de Transplantes (RBT), o Estado possuía 10 crianças e adolescentes na fila em 2023, número que saltou para 24 no ano passado.
Desses, 17 (equivalente a 70%) aguardam por um transplante de rim. Com estimativa de 554 cirurgias necessárias no ano e apenas 250 realizadas, o órgão está entre os que ficaram com déficit de operações no ano de 2024, segundo o relatório da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO).
Atualmente, a fila para transplantes pediátricos conta com 16 pacientes, sendo 12 a espera de um rim e quatro esperando um coração. Os dados foram repassados pela Sesa.
Para o presidente do conselho consultivo da ABTO, Huygens García, o Ceará enfrenta um “preço do sucesso dos transplantes”, especialmente os pediátricos. Devido à complexidade das operações de rim, por exemplo, alguns estados não realizam os procedimentos e enviam seus pacientes para o Ceará, via Sistema Único de Saúde (SUS).
“Como o transplante pediátrico é um procedimento mais delicado, a maioria dos outros hospitais, por exemplo os hospitais da região Norte, não faz. Alguns estados da região Nordeste também não fazem. Então, os pacientes são enviados para cá. Isso é um motivo principal, em relação ao rim. A transferência de pacientes de outros centros”, explica o também chefe do serviço de transplante de fígado do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC).
As dificuldades para atender à fila pediátrica passam pelo número de doadores, que de um modo geral, tem crescido abaixo do esperado no Ceará. Em seis dos últimos dez anos, o Estado teve um número de doadores ativos abaixo do esperado, conforme dados do RBT.
Em transplantes como os de coração a situação se torna ainda mais delicada, já que órgãos vitais só são transplantados a partir de doadores que tiveram morte encefálica comprovada.
“A gente sabe que o número de doadores de uma maneira geral não atende a necessidade, e para pediátrico é mais difícil ainda. Para se ter ideia, a faixa etária dos últimos anos dos nossos anos é de 18 a 65 anos. É um percentual pequeno de doadores abaixo de 18 anos. Isso já é um fator. E claro, a gente não quer que as crianças morram vítimas de acidentes ou AVC. Esse número de doadores no Brasil de uma maneira geral é baixo”, pontua a orientadora da Central de Transplantes da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), Eliana Regia.
A situação é menos complexa em órgãos como o rim, que pode ser temporariamente substituído pela hemodiálise. Esse, inclusive, é um dos motivos apontados por ABTO e Sesa para o maior número de pacientes na fila pediátrica renal.
Com o serviço à disposição, os pacientes conseguem sobreviver por mais tempo enquanto esperam pela cirurgia, além de terem um processo mais burocrático para o transplante, devido a necessidade de compatibilidade sanguínea, peso e outros quesitos.
Esse foi o caso de Lara Raquel, 24, que aos 15 anos de idade descobriu um problema renal e necessitou de transplante. Entre o diagnóstico e o recebimento do órgão foram 11 meses de hemodiálise, nos quais a jovem passou por grandes mudanças na alimentação, rotina e até mesmo limite da ingestão de líquidos.
Já há nove anos com o novo órgão, Raquel comemora o retorno à rotina normal, sem as constantes visitas à Capital para o procedimento. Entretanto, os cuidados seguem redobrados para conservar o bem que lhe devolveu a vida e hoje é tratado como um filho.
"O maior benefício, sem dúvida, é não depender mais da máquina. Ter as 24 horas do seu dia para si, poder voltar à rotina de antigamente, poder sair, viajar. Também poder voltar a beber água à vontade, tomar um banho de verdade, coisas que você não dá valor até não poder fazer e ver como sente falta. Quanto à alimentação, eu ainda tenho os mesmos cuidados de quando fazia hemodiálise. Não exagero para poder manter meus exames sempre bons e poder continuar comendo o que eu gosto", conta a paciente.
Raquel passou por três avisos de posspível transplante para que a cirurgia fosse realmente realizado com sucesso. Ao todo, foram três meses de espera. O caso dela, assim como o de muitas outras pessoas, teve um final positivo, com um novo órgão e reforço da vida.
O baixo número de doadores, entretanto, resulta por vezes em mortes de pacientes ainda na espera pelo transplante. De acordo com a ABTO, só em 2024, cinco pacientes pediátricos morreram no Ceará enquanto aguardavam na fila por um coração.
A hesitação dos parentes das vítimas de morte encefálica ainda figura como o principal motivo para a falta de órgãos para doação em todo o Ceará. Segundo o RBT, 41% das famílias entrevistadas em 2024 optaram por não ceder os órgãos de seus entes falecidos.
Entre os motivos da recusa estão questões culturais e religiosas, instabilidade emocional no momento do luto, bem como a vontade de “preservar o corpo inteiro”. Segundo o presidente do conselho consultivo da ABTO, Huygens García, a melhor forma de vencer esse estigma ainda é informar a amigos e familiares o desejo de ser doador em vida.
“Se todo cidadão, cearense e do Brasil, afirmar em vida ‘eu sou doador de órgãos’, se porventura mais na frente ele tiver um acidente ou uma morte cerebral, a família em quase totalidade dos casos autoriza a doação. Não precisa ir no cartório, registrar, nada. O mais importante é você dizer ‘eu sou doador de órgãos’. A gente vê na prática que quando isso acontece a família autoriza”, pontua o cirurgião.
Esse cenário é visto mesmo no Ceará, referência em doação de órgãos no País. Apesar de ter uma média de doações superior à do Nordeste e a do Brasil, o Estado tem registrado queda no número de doadores efetivos nos últimos três anos, quando a expectativa era, na verdade, de crescimento.
Para a ABTO, a queda no número de doadores pode ser apontada como fator chave para o aumento da fila no Ceará. Aliado a ele, o acesso oneroso de pacientes do interior ao acompanhamento de doenças com necessidade de transplante também contribui para que menos processos sejam concluídos e o público passe mais tempo nas filas de espera.
“O que nós precisamos fazer realmente é aumentar a taxa de doação de órgão e também, claro, os pacientes que moram mais longe terem acesso ao transplante. Muitas vezes eles nem chegam na fila do transplante por estarem em cidades mais distantes, não terem acesso a tratamento adequado… uma série de fatores”, afirma Garcia.
Raquel, por exemplo, é moradora de Itapipoca, município a 136 quilômetros (km) da Capital, e precisou pausar os estudos para fazer a hemodiálise. Com procedimentos no Hospital Geral de Fortaleza (HGF) três vezes na semana, a jovem não pôde acompanhar o calendário acadêmico e se afastou da escola durante os 11 meses de tratamento.
Esse problema é recorrente para crianças e adolescentes do interior do Ceará, já que os equipamentos de referência transplantes de órgãos do Ceará hoje estão centrados na Capital. De acordo com a Sesa, o trabalho realizado é para identificar os pacientes com necessidade de operação e enviá-los para Fortaleza.
“A Central trabalha junto com a regulação para que as crianças nos nossos municípios sejam identificadas, sejam encaminhadas para vir para o Hospital de Messejana [uma das unidades de referência]”, aponta a orientadora da Central de Transplantes da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), Eliana Regia..
Além dele, o Hospital das Clínicas, o HGF e o Hospital Unimed Sul, este por meio de convênio com o Estado, compõem a rede de referência em transplantes. Há ainda estudos em andamento para que o Hospital Universitário do Ceará (HUC) passe a realizar transplantes, mas ainda sem previsão de início.
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