Quinze alunos da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho (EAOTPS) atuam como “médicos” de 15 obras raras do acervo da Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece). A formação faz parte do Curso de Conservação e Restauração de Bens Patrimoniais – Segmento Papel, realizado em parceria com a Bece. O projeto une teoria e prática, com extensão desenvolvida no laboratório da própria biblioteca.
Com duração de cerca de um mês e meio, o curso iniciou em meados de junho e vai até 23 de julho. A proposta é capacitar alunos na conservação de exemplares do acervo da biblioteca, que possui mais de 10 mil títulos raros, um dos maiores do País, com livros escritos em português, latim, francês e inglês — um tesouro que remonta aos séculos XIX e XX.
Entre os livros restaurados estão obras cearenses que marcaram movimentos culturais e literários do Ceará e do Brasil, como 'Dolentes' (1897), de Lívio Barreto — única obra publicada de forma póstuma, considerada precursora do simbolismo brasileiro — e 'O Cearense na Metrópole Brasileira' (1923), de Jocelyn Luiz dos Santos, que destaca figuras célebres como Clóvis Beviláqua e Capistrano de Abreu.
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Verônica Lima, bibliotecária e restauradora da Bece desde 1985, foi a responsável pela criação do laboratório de restauro da biblioteca. Formada em São Paulo na área de conservação e restauração de papel, ela explica que os títulos escolhidos atendem a critérios de raridade, relevância histórica e importância para a memória cearense.
“Aqui existe o setor de obras raras, com livros e periódicos, mas sempre digo: as obras do Ceará são as mais importantes, porque são os nossos escritores. Desde cedo a gente já começa a cuidar do livro cearense. Cuidar para não precisar restaurar”, afirma Verônica.
Após as aulas teóricas na Escola de Artes e Ofícios, os alunos seguem para a Biblioteca Pública do Ceará, onde têm o primeiro contato direto com as obras raras. É nesse ambiente que o aprendizado ganha forma prática, sob a orientação do professor Luiz Evi Braga, técnico em conservação e restauração de papel.
Segundo o pedagogo e restaurador, o tempo médio necessário para restaurar um livro varia entre três e quatro semanas, dependendo do volume e do estado de conservação da obra. “Cada exemplar carrega uma história e requer um tratamento específico. Não existe um modelo único de intervenção”, explica o professor.
O processo de restauração segue diversas etapas, todas realizadas pelos alunos. Ele começa com uma avaliação minuciosa que identifica os danos e define o melhor plano de intervenção. Os danos mais frequentes observados pelo professor nas obras em restauração incluem mofo, oxidação causada por grampos e acidificação do papel, que o torna quebradiço e suscetível a rasgos.
A execução envolve o uso de equipamentos especializados — como cabines de higienização — e instrumentos precisos, entre eles pinças, bisturis e tesouras, sempre manuseados com Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). Cada detalhe é conduzido com cuidado, garantindo que o trabalho de preservação respeite a integridade e a memória dos documentos históricos.
As etapas práticas incluem, segundo o professor:
- Higienização mecânica: remoção de sujeira e poeira folha por folha.
- Higienização adicional: uso de pó de borracha e bicarbonato de sódio para casos de mofo.
- Teste de pH: avaliação do nível de acidez do papel.
- Teste de solubilidade: verificação da resistência do papel e das tintas à água.
- Banho alcalino: estabiliza o pH, reduz a fragilidade e prolonga a vida útil do papel.
- Pequenos reparos: remendos, obturação, velatura, enxertos e, se necessário, desencadernação e reencadernação.
- Armazenamento e secagem: uso de secadores e espátulas específicas, ajustadas à temperatura ideal.
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Os alunos deste semestre Ana Luiza, 34, e Lucas Rodrigues, 22, compartilharam com O POVO suas experiências como participantes do curso de conservação e restauração.
Formada em Biblioteconomia e especializada em gestão de arquivos, Ana Luiza também é apaixonada por trabalhos manuais e vê no curso a união perfeita entre suas áreas de interesse. Atuando no restauro da obra "Dolentes", ela destaca a importância do cuidado no manuseio dos materiais e o valor simbólico de contribuir com a preservação do patrimônio histórico.
“É uma oportunidade ímpar, tanto na qualificação profissional quanto na vivência pessoal. Está sendo muito enriquecedor e gratificante. É uma oportunidade única que a escola oferece: vivenciar na prática o restauro de obras tão importantes para o nosso estado”, afirma.
Já Lucas, estudante do curso de Biblioteconomia na Universidade Federal do Ceará (UFC), participa pela primeira vez de uma formação na Escola de Artes e Ofícios. “É um aprendizado que fará parte da minha prática profissional como futuro bibliotecário.” Ele é responsável pela conservação de "Ondulações da Poesia Nova", do poeta e teatrólogo Newton Belleza, publicada em meados de 1937.
Ele explica que o livro apresentava desgaste causado pela acidez do couro da encadernação, o que liberava um pó alaranjado. Por isso, foi necessária uma nova encadernação. “Também havia perda de suporte nos cantos das páginas, e a solução foi a obturação com polpa de papel, garantindo firmeza e manuseio adequado.”
O estudante enfatiza a complexidade do trabalho, que exige estudo técnico e atenção aos detalhes: “O processo de restauração demanda disciplina e conhecimento sobre as especificidades da obra. É preciso reconhecer com precisão quais intervenções são possíveis e adequadas. É um trabalho minucioso e muito cuidadoso”.
Enide Vidal, diretora da Biblioteca Pública do Estado do Ceará, destaca com entusiasmo o valor do trabalho de preservação que vem sendo realizado. Ela lembra que a preocupação com conservação é antiga. “Desde a reforma do prédio, já tínhamos um setor de encadernação e restauro, embora menor. Agora, com a parceria com a Escola de Artes e Ofícios, expandimos essa missão”, destaca.
Ela defende que o restauro não só capacita, mas aproxima a população do valor histórico desses documentos. “A Biblioteca é um tesouro muitas vezes desconhecido pela população”, conclui.