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Povos tradicionais terão acesso à CNH Popular no Ceará a partir da edição deste ano
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Povos tradicionais terão acesso à CNH Popular no Ceará a partir da edição deste ano

Medida articulada junto ao Detran-CE inclui ciganos, indígenas, quilombolas e pescadores artesanais no programa de habilitação gratuita. Lideranças apontam avanço histórico
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Povos tradicionais terão acesso à CNH Popular no Ceará a partir de 2025 (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Povos tradicionais terão acesso à CNH Popular no Ceará a partir de 2025

Povos e Comunidades Tradicionais do Ceará, como ciganos, indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, agricultores familiares, marisqueiras e povos de terreiro, passarão a ter acesso à CNH Popular a partir da edição de 2025 do programa estadual.

A medida, atualmente em fase de articulação com o Departamento Estadual de Trânsito do Ceará (Detran-CE), é resultado da mobilização de lideranças que há anos reivindicam o direito à habilitação como parte de uma política pública de inclusão.

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O projeto foi articulado por Rogério Ribeiro, cigano do povo Calon e presidente da Rede Brasileira dos Povos Ciganos. Para ele, garantir a CNH gratuita não se trata apenas de oferecer um documento, mas de reconhecer trajetórias de resistência e abrir caminhos para o acesso ao trabalho, à mobilidade e à dignidade.

“Não se trata apenas de um documento. A CNH representa acesso ao trabalho, liberdade de locomoção, autoestima e cidadania. Para o povo cigano, que viveu por séculos à margem do Estado, isso é uma questão de sobrevivência”, afirma.

A proposta

Segundo o Detran-CE, a proposta ainda está em fase de articulação e discussão. No entanto, a partir da edição 2025 do Programa CNH Popular, os Povos e Comunidades Tradicionais do Ceará passam a ser contemplados tanto por essa política de habilitação gratuita quanto pelo Programa ABCDetran, voltado à educação e inclusão no trânsito.

De acordo com o presidente da Rede Brasileira dos Povos Ciganos, a falta de documentação e o baixo acesso à educação formal contribui para a exclusão sistemática desses povos em programas sociais.

“Somos tratados como nômades, como se isso nos desresponsabilizasse de nossos direitos. Mas temos territórios, vínculos, histórias e demandas concretas. A política pública precisa ser construída com base no diálogo real com as nossas comunidades”, afirma Rogério Ribeiro.

Para ele, a medida pode se tornar um marco. “Se o Ceará for pioneiro, outros estados vão seguir. Precisamos que o Brasil reconheça os povos ciganos como sujeitos de direitos. E isso começa com ações concretas, como garantir que nossos jovens possam dirigir com dignidade e legalidade.”

Tradição, identidade e resistência: como vivem os ciganos no Ceará?

 

A luta por direitos, como o acesso à CNH Popular, caminha junto ao fortalecimento da identidade cultural cigana, marcada por valores de coletividade, oralidade, espiritualidade e profundo respeito às tradições. No Ceará, os povos ciganos seguem cultivando seus modos próprios de viver.

De acordo com Rogério, os ciganos no Estado pertencem majoritariamente ao povo Calon, uma das três etnias ciganas reconhecidas no Brasil (ao lado dos Roma e Sinti). Presente em municípios como Boa Viagem, Caucaia, Crateús, Independência, Maracanaú, Quixadá, Aracati e Fortaleza, a população cigana vive tanto em acampamentos quanto em contextos urbanos, onde busca manter vivas suas raízes.

As famílias ciganas são organizadas em estruturas comunitárias e se orientam por valores transmitidos oralmente de geração em geração. A convivência intergeracional é fundamental: anciões são respeitados como guardiões da memória e das decisões importantes da coletividade.

Trabalho e sustento

De acordo com Rogério, muitos ciganos atuam como comerciantes autônomos, vendendo roupas, utensílios, cosméticos e produtos diversos. Outros exercem ofícios tradicionais, como a ferraria, o conserto de panelas, o artesanato, a leitura de mãos ou cartas (atividade praticada sobretudo por mulheres) e também funções relacionadas à música e ao entretenimento.

A informalidade no trabalho, no entanto, expõe os ciganos à vulnerabilidade econômica. “Somos empreendedores populares por essência, mas sem acesso ao crédito, à formalização ou a políticas de incentivo, nossas famílias seguem na base da pirâmide social”, explica Rogério.

Cultura viva: danças, festas e culinária

A cultura cigana é rica e diversa. Nas comunidades do Ceará, festas tradicionais ainda são celebradas com danças circulares, roupas coloridas, músicas com instrumentos de corda e percussão. A dança cigana, principalmente entre as mulheres, é símbolo de força, beleza e liberdade, marcada por movimentos firmes dos quadris, giros e gestos com as mãos.

A culinária também carrega tradições fortes. Pratos como o arroz com carne seca e legumes, o pão assado na brasa e o café forte servido em pequenos copos são comuns nos acampamentos. O preparo das refeições é, em geral, coletivo, reforçando os laços familiares.

Os casamentos ciganos ainda preservam rituais próprios, como o dote e a cerimônia da “pureza”, embora muitos desses costumes estejam sendo ressignificados pelas novas gerações. A religiosidade é diversa: há entre os ciganos evangélicos, católicos, seguidores de doutrinas espíritas e praticantes de espiritualidades próprias, ligadas aos ancestrais e aos ciclos da natureza.

Educação dos povos ciganos

Apesar da riqueza cultural, os povos ciganos seguem enfrentando forte preconceito. São frequentemente associados a estereótipos negativos, o que dificulta o acesso à educação, à saúde e a empregos formais.

“Ser cigano no Brasil ainda é resistir diariamente. Mas estamos nos organizando. Estamos dizendo: estamos aqui, temos cultura, temos história, temos direito”, afirma Rogério.

Segundo ele, a CNH Popular é apenas o início de um conjunto de políticas públicas que precisam ser construídas. “O que queremos é poder viver a nossa cultura sem medo, com dignidade. Queremos ser reconhecidos não pela mística que nos impõem, mas pela humanidade que compartilhamos”.

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