O trecho entre o calçadão e a água é um desafio para pessoas com deficiência (PCDs) na Beira Mar, em Fortaleza. Não há esteira, rampas, corrimãos, dispositivos de acessibilidade fundamentais. Quem demanda as ações são participantes do Projeto Remar, iniciativa de inclusão que oferece atividades de canoagem gratuitas no local.
“Até o calçadão é tranquilo. Depois, a gente não tem uma rampa que leva até a praia. É preciso sempre de ter uma ou duas pessoas para trazê-los. Cadeirante, a gente tem que suspender a cadeira, trazer a pessoa no braço e isso já barra muito”, afirma Elione de Sousa, 42, paratleta profissional e proprietário de uma escola de canoagem que cede espaço ao Remar.
Ele pondera que o slogan "Beira Mar de Todos", presente em placas no calçadão, é uma discrepância entre a realidade e o que deveria acontecer.
João Henrique Pereira, de 54 anos, participa da iniciativa com Patrícia Lima, 48, sua esposa, que enfrenta Parkinson precoce. Ele destaca a escassez de vagas de estacionamento acessíveis e a necessidade de ajuda para transpor a cadeira de rodas da esposa sobre as escadas e a areia até as caiaquerias onde o projeto acontece.
"Tem que ter auxílio de alguma pessoa, porque eu sozinho não consigo descer com ela. É arriscado. Como é uma descida íngreme e muito inclinada, a gente sempre perde o controle da cadeira”, relata João Henrique.
Há um ano, o casal encontrou apoio no Projeto Remar, depois de Patrícia ter sido diagnosticada com Parkinson precoce, em 2019, o que a levou a perder a mobilidade e o equilíbrio do corpo. João Henrique precisou deixar o trabalho para se dedicar aos cuidados dela, acompanhando-a em fisioterapias e consultas médicas.
Regina Rezende, de 60 anos, é outra participante do projeto. Ela trabalhava como cozinheira antes de perder a visão devido ao diabetes há pouco mais de dois anos.
“Precisamos muito de ajuda, escadas, rampas, para nós, deficientes visuais, para os cadeirantes, é muito complicado. Se não fossem os voluntários, a gente não teria essa facilidade de estar aqui. Não conseguimos nos movimentar sozinhos. Mesmo com o uso da bengala não tem condição”, comenta Regina.
Apesar dessas dificuldades, ela expressa a alegria e sensação de liberdade que encontrou no projeto, que a conectou com o mar e lhe deu autonomia.
“Eu nunca tinha entrado no mar. Quando eu enxergava, tomava banho de areia. É assim que acho que gente que tem medo do mar faz. E aí o professor Vicente (fundador do projeto) no meu primeiro dia já me levou para o mar, me fez boiar. Foi a sensação mais linda que eu senti nesse dia, boiando e sentindo o sol”, relembra.
Ela também critica a “falta de empatia e boa vontade” por parte de políticos e autoridades, que, muitas vezes, ignoram as necessidades das pessoas com deficiência e não promovem as mudanças estruturais e sociais necessárias.
O professor universitário Vicente Cristino, um dos fundadores do Projeto Remar, explica que a iniciativa conta com voluntários de várias áreas de conhecimento e atende de 50 a 100 pessoas, semanalmente. Porém, ainda enfrenta o desafio da falta de acessibilidade ao mar e às escolas parceiras.
Barreiras arquitetônicas como escadas e a ausência de rampas impedem o acesso autônomo de cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida ao mar, apesar de repetidas solicitações às autoridades, segundo Vicente.
Ele enfatiza que a acessibilidade é um direito constitucional e beneficiaria não só os participantes do Remar, mas toda a sociedade e até turistas, promovendo saúde, lazer e inclusão social, combatendo o sedentarismo e a depressão.
Thiago Camargo, empresário e também fundador do Projeto Remar, reforça que a avenida Beira Mar de Fortaleza é "a orla mais top do Brasil", mas reforça que ainda carece de acessibilidade em trechos cruciais e mais estacionamento exclusivo para PCD.
A obrigatoriedade dessas melhorias é estabelecida por normas brasileiras, que adquirem força de lei devido à legislação sobre acessibilidade, conforme explica o arquiteto especializado em acessibilidade arquitetônica, Plínio Silveira, de 37 anos.
“A acessibilidade arquitetônica e urbanística vai abranger todos esses espaços comuns da Beira Mar, o calçadão, os bancos... as vagas de estacionamento também muito importantes. Dentro de uma visão do desenho universal que é para todas as pessoas, incluindo pessoas com deficiência e pessoas com mobilidade reduzida”, explica Plínio.
Ele destaca avanços recentes, como a substituição de pisos derrapantes por antiderrapantes e a instalação de rampas e pisos táteis, atribuindo essas conquistas a uma crescente cultura inclusiva e maior sensibilidade de profissionais e gestores.
Porém, o arquiteto também aponta falhas em padrões de pisos táteis, ausência de espaços laterais em bancos para cadeirantes, e a falta de acessos à praia por meio de rampas ou esteiras, elementos previstos pela Norma Brasileira Regulamentadora (NBR) 9050.
A legislação, com a última atualização em 2020, é a principal normatização brasileira que estabelece diversos critérios de acessibilidade em edificações, espaços e equipamentos urbanos.
“A Norma determina que seja feita uma faixa de acesso até o mar, que pode ser feito, por exemplo, com esteiras, ou pode ser feito com algum tipo de pavimento, a depender da situação específica. Geralmente a esteira responde a esse item”, destaca o arquiteto.
A dificuldade em cumprir integralmente o que a lei determina é multifatorial, mas Plínio ressalta que há uma carência de conhecimento sobre as possibilidades e obrigatoriedades por parte de técnicos e gestores.
“Falta chegar a esse entendimento para que esses gestores possam de fato executar aquilo que é de direito para essas pessoas, que é o acesso ao mar”, completa o arquiteto.
O POVO questionou por email a Secretaria Municipal de Infraestrutura (Seinf) e a Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) da Prefeitura de Fortaleza sobre as condições de acessibilidade na avenida Beira Mar.
A SDHDS respondeu por nota que “estuda, neste momento, diversas soluções técnicas, urbanísticas e inclusivas para assegurar o direito ao lazer com segurança e dignidade não somente na região da Beira Mar, mas em toda a Cidade”.
De acordo com a Secretaria, essa iniciativa faz parte do plano Fortaleza Inclusiva, lançado em julho deste ano, que possui entre seus oito programas o de Atenção às Pessoas com Deficiência.
Uma das ações desse plano é o “Grupo de Trabalho de Obras e Acessibilidade, instância intersetorial envolvendo áreas como Turismo e Infraestrutura”, que avalia as soluções do problema.
Além disso, a SDHDS afirma que desde o início do ano participa de diálogos institucionais com permissionários, empresários que atuam na região e o trade turístico para debater as melhorias de acessibilidade para toda a região da Beira Mar.
O POVO também questionou os prazos para apresentação e execução de algum plano de estrutura capaz de garantir as condições de acessibilidade, mas não obteve reposta dessas questões.
Projeto Remar