Preconceito e machismo. O estado do Ceará registrou 193 vítimas de violência motivada por homofobia ou transfobia apenas no primeiro semestre de 2025, entre 1º de janeiro e 30 de junho. O número equivale a uma média de aproximadamente uma pessoa LGBTQIA+ vítima de violência por dia. Em comparação com o mesmo período de 2024, quando foram contabilizadas 170 vítimas, houve um aumento de 13,5%.
O último mês de junho, internacionalmente reconhecido como o Mês do Orgulho LGBTQIA+, até agora foi o mês com mais casos registrados, contabilizando 39 ocorrências.
Os dados são da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS/CE), contabilizados pela Diretoria de Estatística e Geoprocessamento (DIEST/SUPESP). As informações se baseiam nos Boletins de Ocorrência registrados presencialmente em delegacias ou de forma eletrônica.
O levantamento ainda indica que os casos específicos de homofobia — que envolvem agressões físicas, verbais, ameaças, discriminação ou qualquer outro tipo de violência motivada pela orientação sexual da vítima — passaram de 138 no primeiro semestre de 2024 para 147 em 2025, um crescimento de 6,5%.
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Os registros de transfobia — voltados contra pessoas trans ou travestis, em razão de sua identidade de gênero — tiveram um aumento mais expressivo: subiram de 32 para 46, o que representa um crescimento de 43,75%.
Em relação à orientação sexual, 32,6% das vítimas se identificam como gays, 15% como lésbicas, 7,8% como bissexuais, 3,6% pansexuais e 1% assexuais. Pessoas heterossexuais representam 21,8% das vítimas.
Já sobre a identidade de gênero, 40,9% das vítimas se declaram homens cisgêneros, 21,8% mulheres cis, 11,9% mulheres trans, 4,6% homens trans e 2,8% travestis.
Para Silvinha Cavalleire, presidenta nacional da União Nacional LGBT, os dados refletem diferentes dinâmicas de violência.
“Os crimes de homofobia sempre foram mais comuns na sociedade, principalmente porque existe uma conduta moral que normaliza o uso de palavras de cunho homofóbico como forma de xingamento. Já a transfobia geralmente está relacionada à negação de direitos fundamentais no momento em que essas pessoas tentam acessá-los”, pontua.
Fortaleza lidera o ranking de municípios com maior número de ocorrências, concentrando 118 dos casos. Em seguida, aparece Juazeiro do Norte, com 11 registros. “Sabemos que existe uma forte subnotificação, especialmente no interior do Estado. Isso porque muitas pessoas ainda não têm confiança de que os agressores serão punidos com o rigor da lei”, afirma Cavalleire.
Em todo o ano de 2024, o Ceará somou 372 vítimas de LGBTfobia, sendo 305 por homofobia e 67 por transfobia.
Apesar de o Ceará ter registrado 193 vítimas de homofobia ou transfobia no primeiro semestre, apenas 11 processos relacionados à intolerância/injúria por orientação sexual, identidade e expressão de gênero foram registrados no Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) no mesmo período.
Desses, 10 foram iniciados e permanecem na primeira instância, enquanto um já foi encaminhado à segunda instância, segundo o TJCE.
Conforme a supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria Pública do Estado do Ceará, Mariana Lobo, existe um problema estrutural na forma como o sistema de Justiça trata essas ocorrências.
"Tanto na fase do inquérito (investigação) quanto no processo judicial, a motivação homofóbica ou transfóbica raramente é destacada como fator relevante, apesar de, em muitos casos, ter sido justamente o motivo do crime", explica.
A defensora destaca uma tendência à culpabilização da vítima. "Muitas vezes, uma pessoa assassinada é descrita com base em julgamentos sociais, como 'trabalhava na rua', 'tinha envolvimento com tráfico', 'frequentava determinados espaços'. Isso contribui para uma desvalorização da vítima e dificulta que o processo tenha continuidade".
Ela ainda pontua que o Brasil registrou avanços nos últimos anos em políticas de enfrentamento à violência contra a mulher e feminicídio, a exemplo da Lei Maria da Penha.
“Acreditamos que crimes praticados com motivação homofóbica ou transfóbica precisam receber a mesma atenção do sistema de Justiça. Porque, infelizmente, o Brasil é um dos países com o maior número de homicídios de pessoas em razão de sua identidade de gênero ou orientação sexual”, conclui.
Silvinha Cavalleire, presidenta nacional da União Nacional LGBT, destaca que muitos crimes só são investigados após a morte da vítima. “Mesmo assim, nem sempre há apuração ou prisão dos suspeitos. Basta ver os casos recentes de assassinatos de travestis e mulheres trans onde nenhum suspeito foi preso até hoje”, diz.
Ela cita o exemplo de Vivia Paiva, mulher trans que foi assassinada a tiros no ultimo mês de junho no município de Itapajé. Caso semelhante é o de Safira Meneghel, uma travesti com deficiência cognitiva e auditiva, brutalmente morta a golpes de paus e pedras em Fortaleza, em agosto de 2024.
Outro exemplo é o assassinato de Hérica Izidoro, ocorrido na mesma semana do caso Dandara, em abril de 2017. Os três casos seguem sem suspeitos identificados ou presos.
Segundo a ativista, o Ceará conta com apenas uma delegacia especializada para lidar com crimes de LGBTfobia, a Delegacia de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou Orientação Sexual (Decrim).
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A unidade está localizada no bairro Papicu, em Fortaleza, e atende de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h. "Segundo sua lei de criação, ela só tem competência sobre o município de Fortaleza. Ou seja, os outros 183 municípios ficam descobertos de uma atenção especializada", aponta.
“Temos insistido para que essa Delegacia passe a funcionar 24 horas em Fortaleza. A maioria dos crimes acontece à noite ou na madrugada. E, depois disso, que ela seja ampliada para outros municípios do interior, onde também há altos índices de casos de LGBTfobia”, afirma.
De acordo com a Secretaria da Diversidade (Sediv), o acolhimento de pessoas LGBTI+ em situação de violência ou vulnerabilidade também podem ocorrer pelo Centro Estadual de Referência LGBT+ Thina Rodrigues, no bairro Papicu, Fortaleza. A atuação também ocorre por meio da Unidade Móvel de Atendimento LGBTI+ Dandara Ketlely.
O POVO questionou a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) sobre a avaliação dos dados relacionados à LGBTfobia. Também solicitou esclarecimentos sobre o preparo das delegacias não especializadas para lidar com esses casos e sobre o atendimento no Interior do Estado.
A pasta declaclou que "os policiais civis realizam, de forma sistemática, cursos promovidos pela Academia Estadual de Segurança Pública (Aesp), com treinamento continuado". Além disso, desde sua inauguração em fevereiro de 2023 até junho de 2025, a Decrim instaurou mais de 400 inquéritos sobre crimes de intolerância em Fortaleza.
Também foi questionado o funcionamento da Decrim fora do horário comercial, além de solicitadas informações sobre investimentos do Governo do Ceará em ações de prevenção e combate à violência contra a população LGBTQIA+, com indicação de valores. A reportagem pediu ainda detalhes sobre os casos das mulheres trans citadas. A matéria será atualizada caso haja resposta.