Maria Aldeci atravessa o breu da rodovia com pressa. O estalado da chinela contra o asfalto perde somente para o barulho dos carros que surgem, mas ela não freia nunca o passo, nem muda o foco. A devota, de 49 anos, fez parte das centenas de romeiros que viveram horas ou dias de caminhada até chegar a Canindé — onde teve início, na madrugada dessa terça-feira, 24, a festa em comemoração a São Francisco das Chagas.
Festejo teve sua abertura na Praça da Basílica, às 4 horas, com o tradicional hasteamento das bandeiras e uma missa. Para a católica, moradora de Caridade, município a 21 km da cidade onde evento aconteceu, cerimônia seria a etapa final de um desafio que se propôs a cumprir em razão de uma promessa feita.
Ela jurou ao santo de devoção que trilharia caminho se uma ferida que havia aparecido no pé de sua mãe, já idosa, sumisse. A mazela foi desfeita e a fiél se juntou ao grupo depessoas que realizam a romaria. Entregou o corpo esguio à estrada, carregando apenas água e o básico para sobreviver a caminhada.
Por volta das 21 horas da segunda-feira, 23, ela já alcançava por pouco a entrada de Canindé e não quis parar o passo nem para conversar, obstinada que estava em completar destino. “Tudo que a gente pede a ele (São Francisco), a gente agradece (...) Vale a pena ”, diz a devota, mostrando nesse momento que carregava também um pé feito de tecido, representando o órgão que foi curado. Item seria levado até a Sala dos Milagres, parte da igreja onde ficam expostos objetos que representam uma cura alcançada.
Há poucos metros à frente dela caminhava Rafael Rodrigues, 31, que virou devoto do santo por uma questão de acaso e chamado. Nove anos atrás, ele sofreu um acidente de moto e quebrou o braço direito em dois pedaços. Ouviu de especialistas que viveria uma deficiência, mas foi alvo de uma intervenção.
Conta que, em um dos consultórios médicos em que foi, viu uma imagem de São Francisco e se pegou ajoelhado em frente a ela pedindo forças ao santo para se adaptar à nova condição. "(Ele) foi mais poderoso que o meu pedido e curou meu braço 100%, (tanto) que hoje eu acredito que (o braço) tem mais força do que o outro que eu nunca quebrei", diz o instalador de sistemas fotovoltaicos.
A partir de então, Rodrigues passou a fazer a romaria, como quem se viu ligado a uma gratidão infinita. Ele sai de Fortaleza junto a um grupo chamado "Caminhada da Fé" e enfrenta três dias de estrada. O braço sarado saculeja pelo caminho como um lembrete de superação, fazendo a peregrinação engrenar.
Perto da chegada, o jovem para rapidamente apenas para pegar mantimentos oferecidos em um carro que serve como ponto de apoio, e que faz entrega de cereais, água e suco. Ação é realizada por Maria Vanessa, 27, e sua família. Naquele veículo parado no acostamento, a empresária mostra que São Francisco, para ela, é compaixão, amor e dedicação às necessidades do próximo, conforme legado deixado pelo santo.
Além de voluntários desse tipo, motoristas também assumem uma função importante. Quase sempre que enxergam as lanternas dos romeiros cortando o breu, eles buzinam, assobiam, indicam que admiram a entrega e impulsionam devotos a seguir caminho. Estrada é difícil, faz arder o peito do pé e encharca o corpo de suor, mas os fiéis permanecem alegres e, ainda que com respiração difícil, brincam e se entretém.
Quando avistam o ponto da chegada, muitos deles se arrepiam, entoam cânticos, esquecem as dores físicas. Na entrada da cidade, amigos e familiares aguardam e fogos de artifício são soltos em comemoração. Aqueles que chegam primeiro esperam os demais, assobiam, fazem festa.
Eduardo Borges, 44, pela primeira vez sentiu essa recepção. Ele mora no Rio Grande do Sul e namora uma cearense, nativa de Canindé. Em 2024, o corretor de imóveis veio passar alguns dias na cidade cearense e se deparou com a romaria. Não acreditava em São Francisco, até sentir de perto a força de seus fiéis.
"Eu vi o fervor do povo, o que me chamou atenção foi aquele mar de gente nas novenas. Eu nunca tinha visto aquilo (...) Ai tu começa a acreditar né?", conta. Nesse ano, ele fez a primeira caminhada, saindo de Fortaleza, e confessa que a relação de curiosidade com o santo pode se transformar em compromisso.
Romeiros foram chegando até a Praça da Basílica, onde o evento iria acontecer, quando o sol nem ameaçava nascer ainda. Muitos dormiram nas calçadas, compartilhando lençóis e comida. Alguns carregavam pés com calos, joelhos machucados e um caminhar que mostrava cansaço.
Aos poucos, alguns moradores se juntaram a eles, aparecendo com bancos e cadeiras, em busca de conforto. Todos, de crianças a idosos, vestiam roupas simples, chinelas comuns, e se apinhavam no equipamento despidos de vaidade, a exemplo do santo a quem foram celebrar.
Frei Gilmar Nascimento, que presidiu a celebração de abertura, fez um instante de acolhimento aos devotos e às 4 horas em ponto deu início oficial aos festejos. Nesse momento, foram hasteadas as bandeiras do Brasil, de Canindé e de São Francisco, com o cântico dos hinos e músicas respectivas.
“Que esse País seja um lugar de esperança, (...) Porque o Brasil é soberania nossa (...) O Brasil é dos brasileiros", disse o líder religioso antes da insígnia nacional ser hasteada.
Logo após esse momento, a igreja ganhou um letreiro colorido com os dizeres "São Francisco Rogai Por Nós" e fogos de artifício tomaram conta do céu, com uma missa sendo iniciada para uma já multidão de espectadores. Muitos usavam o traje típico franciscano, que faz parte de promessas feitas ao santo.
Maria Clara, 16, era uma das que utilizavam o traje com esse intuito. Estudante nasceu prematura e para que sobrevivesse, sua mãe garantiu a São Francisco que todos os anos a filha viria ao festejo vestida com vestes franciscanas. “Sou um milagre. Ele é um santo protetor pra mim”, diz a jovem.
Francisco Delfino, 63, também foi curado por São Francisco. Morador de Canindé, ele fez uma promessa após adoecer e veio à celebração com vestes franciscanas, agradecer o alcance da graça. Para o aposentado, segundo ele diz, o santo representa "saúde", conforme suas próprias experiências.
Quando o sol tomou conta do céu, enfim nascendo, a missa se encaminhou para o final. Nesse momento em que a multidão foi se dispersando, a rua surgiu tomada por lojas e camêlos de artigos religiosos — atraindo devotos. Além de alimentar a fé, festejos também contribuem para a renda da cidade.
"É muito movimentado. (Traz) muitos lucros para todos nós", diz Erbenia Brito, 52, contando que abre o estabelecimento no qual é dona, localizado ao lado da basílica, mais cedo na época de festas.
A celebração tem como tema “São Francisco, sinal de esperança no cuidado com a criação”, e celebra o jubileu de 800 anos da composição do Cântico das Criaturas, escrita por São Francisco em um de seus momentos de maior sofrimento. Festejos seguem até o dia 4 de outubro próximo, com uma programação que inclui: missas, batizados, procissões, novenas e atividades culturais.