Abordei o quanto a política contamina o debate sobre a segurança pública na coluna passada. Volto ao assunto, que está longe de ser esgotado. O capítulo mais recente do imbróglio envolvendo governo federal e governadores é a aprovação da Lei Antifacção (Projeto de Lei nº 5.582, de 2025, de autoria do Poder Executivo). Designado pelo governador Tarcísio de Freitas, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite (PP/SP), vestiu os trajes de congressista e se arvorou como relator da proposta.
É de se imaginar que São Paulo seja um Estado muito tranquilo a ponto de ver seu secretário dispensado temporariamente das funções. O absurdo não para por aí. As primeiras versões do texto, que desconfiguram o original encaminhado ao Congresso, geraram polêmica e uma reação forte da Polícia Federal, que teria de se subordinar aos estados para atuar. Revisado, a expectativa é que o Projeto de Lei seja votado ainda esta semana..
A proposta visa alterar diversos diplomas legais brasileiros para combater as organizações criminosas no país, propondo o que vem sendo chamado de "Marco Legal do Combate ao Crime Organizado Ultraviolento no Brasil". O projeto tramita em regime de urgência constitucional e foi distribuído para as Comissões de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO) e de Constituição e Justiça e de Cidadania.
O relatório de Derrite descreve um cenário de grave crise na segurança pública, onde organizações criminosas ultraviolentas operam com estrutura hierárquica, recursos vultosos e logística avançada, assumindo contornos de ameaça direta à autoridade do Estado. O texto menciona a "militarização do crime" com ataques coordenados, uso de armamento bélico, drones e domínio de territórios, e a infiltração da criminalidade em empresas e instituições financeiras.
Para enfrentar essa dinâmica, o relator defende a necessidade de "legislação de guerra em tempos de paz" para asfixiar financeiramente as facções, silenciar líderes e restabelecer o monopólio estatal da força. O Substitutivo proposto por Derrite se estrutura em cinco eixos principais, focando em modernizar tipificações, endurecer penas e criar instrumentos robustos de intervenção patrimonial e empresarial.
O texto cria o novo crime de "domínio social estruturado" (Art. 2º), tipificando condutas como: utilizar violência para impor controle sobre áreas geográficas ou comunidades; empregar armas, explosivos, agentes biológicos ou químicos; restringir a livre circulação de pessoas, bens e serviços (bloqueios, barricadas); impor controle social sobre atividades econômicas ou serviços públicos; promover ataques contra instituições financeiras, carros fortes, meios de transporte ou instituições prisionais, além de criar também a figura do "Favorecimento ao domínio social estruturado".
A pena base proposta para o crime de "domínio social estruturado" é de 20 a 40 anos de reclusão. Com as causas de aumento (como liderança, uso de armas restritas ou proibidas, ou aliciamento de crianças/adolescentes), a pena de um líder de facção pode atingir mais de 65 anos de prisão. O texto também eleva a pena de crimes correlatos (homicídio, roubo, extorsão mediante sequestro) quando cometidos no contexto de atuação da organização criminosa, podendo chegar a 20 a 40 anos para o latrocínio e homicídio doloso.
O Substitutivo prevê medidas rigorosas para asfixia financeira das organizações, como: sequestro, arresto e indisponibilidade de bens (físicos, digitais e financeiros), bloqueio cautelar de acesso a sistemas financeiros e plataformas digitais, proibição de uso de instrumentos de crédito/débito e operações em corretoras de criptoativos, Os crimes tipificados no PL serão considerados hediondos e são declarados insuscetíveis de anistia, graça, indulto e livramento condicional. O tempo necessário para progressão de regime aumenta, podendo chegar a até 85% da pena, enquanto as lideranças de facções cumprirão obrigatoriamente a pena em presídio federal de segurança máxima. Há previsão ainda de monitoramento de diálogos em parlatórios prisionais (captura audiovisual e gravação), ressalvando-se a comunicação entre advogado e cliente em caso de conluio criminoso, que será analisada. É vedada também a concessão de auxílio-reclusão aos dependentes de membros presos por esses crimes, um aceno ao populismo.
O Substitutivo também incorpora a criação do Banco Nacional de membros de Organização Criminosa Ultraviolenta e de bancos estaduais interoperáveis, com o objetivo de unificar dados e informações sobre pessoas e entidades vinculadas a facções. A integração a esses bancos estaduais é estabelecida como condição necessária para receber repasses voluntários da União no Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).
As medidas são bastante válidas. Há um impasse sobre o destino dos recursos apreendidos em ações das polícias, mas isso deverá ser objeto de discussão. O mais relevante é que a proposta seja votada logo, a despeito de quem seja o relator. O Brasil vem tomando medidas contra as organizações criminosas, não sendo inerte, mas é preciso estabelecer um marco nessa luta. Não basta ao governo obter sucesso na desarticulação de setores do crime organizado, é preciso que ele seja visto como competente para tanto, dando à população a sensação de que esse desafio não é insolúvel. A desesperança é um péssimo sentimento, com graves repercussões na sociedade.