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Na maior mobilização indígena das COPs, Sônia Guajajara cobra avanço na demarcação
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Na maior mobilização indígena das COPs, Sônia Guajajara cobra avanço na demarcação

Em entrevista exclusiva ao O POVO, a ministra fala sobre sua atuação, parcerias com o Governo do Estado e o protagonismo dos povos originários na agenda climática mundial
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Sônia Guajajara articulou demandas históricas (Foto: Bruno Peres/Agência Brasil)
Foto: Bruno Peres/Agência Brasil Sônia Guajajara articulou demandas históricas

A presença indígena ganhou centralidade na COP30, em Belém, onde lideranças de diferentes povos ocuparam espaços estratégicos de debate, cobraram avanços reais nas políticas de adaptação e reforçaram a urgência de proteger territórios tradicionais diante da aceleração da crise climática. A conferência, marcada por forte mobilização social, ampliou a visibilidade das pautas indígenas e consolidou sua participação como agente político fundamental nas negociações internacionais.

Neste cenário, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, assumiu papel de destaque ao articular demandas históricas, defender a demarcação de terras como solução climática e pressionar por compromissos mais ambiciosos de países desenvolvidos. Sua atuação, reconhecida globalmente, elevou a representatividade brasileira no evento e fortaleceu o protagonismo dos povos originários na agenda climática mundial.

Ao longo da conferência, encerrada no sábado passado, 22, Guajajara manteve diálogo com governos, organizações e juventudes indígenas, ressaltando que não há transição ecológica possível sem a proteção dos territórios e sem a inclusão plena dos povos originários nos processos decisórios. A ministra conversou com O POVO sobre esses e outros assuntos, na primeira semana da COP30.

O POVO – Qual é a importância do reconhecimento dos territórios indígenas como medida de mitigação da crise climática?

Sônia Guajajara – Ao longo das COPs tivemos dois momentos importantes, até a COP30, para os indígenas. Um deles foi em 2015, na COP21, quando tivemos o Acordo de Paris, que reconhece a importância dos povos indígenas para a ação climática, exigindo que as ações de mitigação e adaptação respeitem seus direitos, promovam seus conhecimentos e garanta seu consentimento livre, prévio e informado, com 350 indígenas, depois na COP em Dubai, com a mesma quantidade. Aqui no Brasil, já chegamos com cerca de 600 indígenas, entre convidados de ONGs, do próprio governo e delegações oficiais. Na zona azul, temos ao menos 400 indígenas credenciados e cerca de 3 mil na Aldeia COP, que chamamos de “o coração da COP30”. É ali que estão os guardiões e as guardiãs do meio ambiente, da biodiversidade, da floresta e da cultura. Estamos realizando debates conectados com as agendas da zona azul e da zona verde e com o mundo. No total, temos em Belém aproximadamente cinco mil indígenas. É a maior participação indígena da história das COPs. O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) trabalhou, desde que Belém foi anunciada como sede, para garantir a maior e melhor participação indígena, e conseguimos.

OP – De que forma os povos indígenas podem ser beneficiados com a implantação do Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF)? O que muda para as comunidades com esses novos instrumentos de financiamento?

Sônia – O TFFF é uma iniciativa do Governo Brasileiro, construída junto com o Ministério dos Povos Indígenas, Ministério do Meio Ambiente, Fazenda e o Itamaraty. Desde o início, incluímos o movimento indígena nesse diálogo. Incorporamos a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Aliança Global de Territórios Comunitários, que tem o Brasil na coordenação, e que atuou junto ao Banco Mundial na construção do mecanismo. Poderia parecer que seria mais um fundo, mas não é. O diferencial é que garantimos um percentual mínimo de 20% para financiamento direto aos povos indígenas. Esse repasse será definido por uma governança nacional que cada país criará. No Brasil, o diálogo já está avançado. Temos estruturas preparadas para receber e aplicar esses recursos, o Fundo Podáali da Coiab, que já trabalha apoio às associações a políticas comunitárias, o Fundo da Apib, dos povos Jaguatás, o Fundo Maracá, o Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e o Conselho Indígena de Roraima (CIR), entre outros, que já atuam com gestão de recursos e apoio a iniciativas comunitárias. Isso facilita a entrada do TFFF, que já nasce como um mecanismo inovador e permanente, sem depender da decisão de governos que mudam.

OP – O processo de demarcação enfrenta desafios políticos, judiciais e pressões econômicas, como o avanço do garimpo ilegal. Quais são hoje os principais entraves para avançar nessas políticas?

Sônia – Em agosto, tivemos três homologações assinadas pelo presidente Lula, com apoio do Governo do Ceará. O governador Elmano de Freitas foi parceiro, inclusive financiando a demarcação física por meio do Instituto do Desenvolvimento Agrário (Idace), junto com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Essa parceria com governos estaduais é fundamental para avançar. Hoje, o principal entrave é a Lei 14.701, que institui o marco temporal. Infelizmente o Congresso Nacional derrubou o veto integral do presidente e sancionou a lei, criando um impeditivo jurídico que trava novas assinaturas. Além disso, alguns decretos já foram assinados, mas foram questionados politicamente, como ocorreram dois em Santa Catarina. O presidente Lula quer avançar na demarcação, assinar mais processos, mas com segurança jurídica para evitar novos questionamentos que levem os processos ao Judiciário.

OP – O termo justiça climática tem sido muito usado, mas ainda é pouco compreendido. O que significa nas perspectivas dos povos indígenas?

Sônia – Os povos indígenas são os maiores guardiões das florestas e evitaram, até aqui, um colapso climático. Não contribuímos para o aquecimento global, ao contrário, oferecemos soluções com a proteção dos territórios. A demarcação é uma política climática essencial. Justiça climática é reconhecer que já existem povos sofrendo os efeitos da crise, secas, enchentes, insegurança alimentar, aumento de temperatura que inviabiliza plantações. Pensar hoje no enfrentamento à crise climática e aos enfrentamentos às florestas, também é proteger quem protege. Não dá para separar justiça climática da proteção dos povos indígenas.

OP Como tem sido o diálogo do Ministério dos Povos Indígenas com outros países que compartilham a floresta amazônica?

Sônia – Temos uma ótima articulação. Criamos um mecanismo indígena dentro da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), do qual sou co-presidenta junto com a Coiab. Esse espaço permite trazer os povos indígenas para dentro do tratado da Bacia Amazônica. Trabalhamos com organizações indígenas dos oito países da Amazônia Legal e construímos propostas conjuntas. Um exemplo é a campanha “Somos nós”, que reúne povos indígenas e tradicionais em defesa do território e das soluções climáticas.

OP – O protagonismo das mulheres indígenas cresceu muito. Que transformações a senhora percebeu nas aldeias e nos espaços de poder? Quais desafios persistem?

Sônia – Houve um avanço muito grande na participação das mulheres indígenas. Realizamos muitas Marchas das Mulheres Indígenas e, em agosto, fizemos a quarta Marcha com a primeira Conferência Nacional de Mulheres Indígenas, isso depois de quanto tempo? Isso só foi possível porque hoje existe o Ministério dos Povos Indígenas atuante, fazendo coisas diariamente, garantindo centralidade ao tema e de todo debate de políticas públicas indígenas. De lá, saiu o encaminhamento para construir um Plano Nacional de Políticas Públicas para Mulheres Indígenas. Temos mulheres em cargos estratégicos nos estados e no Governo Federal, como a cacique Irê, no Ceará, e a Seísa Pitaguary, também do Ceará, que está como minha secretária nacional de gestão ambiental e territorial. Entre tantas outras lideranças com cargos estratégicos no poder. Tem sim um avanço das mulheres indígenas em espaços importantes. Ainda há povos que não aceitam mulheres como lideranças, mas estamos no caminho de superar esses entraves. As mulheres estão mais empoderadas, autônomas, enfrentando o machismo e entendendo que violência doméstica não é cultura. As mulheres têm que ter espaços para dizer o que querem, o que querem fazer e o que pensam.

OP – Que legado a senhora acredita deixar no Ministério dos Povos Indígenas?

Sônia – Estar no Governo Federal é uma riqueza enorme. Chegamos após um período de destruição e, em dois anos, demarcamos mais territórios do que nos dez anos anteriores. Já são 16 homologações, acima do previsto na transição. Quero deixar o maior número possível de terras demarcadas, porque só com território garantido conseguimos implementar políticas de saúde, educação, cultura e segurança. Quero também consolidar uma política permanente de desintrusão, como a que fizemos em nove territórios, incluindo o Yanomami, onde encontramos 20 mil garimpeiros ilegais dentro de um território com 30 mil indígenas que gerou doenças, contaminação da água, um caos. Hoje, temos mais de 27 unidades de saúde dentro do território, com mais de dois mil profissionais de saúde atuando no território Yanomami. Quero que essa política se torne permanente. (Após a entrevista, até o dia 17 de novembro, foram demarcados mais 12 territórios, durante a COP30).

OP – Como Sônia Guajajara sai?

Sônia - Quanto a mim, saio com muito aprendizado e mais força para seguir na luta. A luta é permanente.

OP – Aceitaria um novo convite para comandar por mais um ciclo?

Sônia - Só o tempo vai dizer. (Ainda sem data definida, Sônia deixará o MPI para tentar a reeleição como deputada federal por São Paulo)

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