O que fazer quando estamos diante de uma situação difícil? É possível controlar os sentimentos quando somos impactados pelo o inesperado? Os desafios do cotidiano sempre vão existir, faz parte da construção da vida de qualquer ser humano. No entanto, saber quais os melhores caminhos uma pessoa pode seguir diante de casos desafiadores de forma adaptável e com inteligência emocional é considerado cientificamente possível. A resposta está no aprendizado e no exercício da resiliência.
Robson Hamuche, terapeuta e fundador do portal Resiliência Humana, define a prática como superação das adversidades. Para ele, a resiliência é a capacidade de se adaptar em meio a situações difíceis ou de fontes significativas de estresse. Na prática, quer dizer que, diante de uma adversidade, a pessoa utiliza sua força interior para se recuperar.
O terapeuta explica que se uma pessoa vê o lado positivo na vida, tudo se torna mais flexível, e que cada pessoa tem sempre uma lição para aprender perante os desafios que acontecem. No entanto, adverte ele, mesmo para quem sabe lidar bem com os momentos mais desafiadores da vida, a resiliência não vem com um manual de instruções.
O terapeuta explica que a resiliência é um processo, e que inúmeras ações podem ser realizadas diariamente para a sua construção, de forma a ajudar as pessoas no enfrentamento das adversidades.
“Cuidar dos nossos relacionamentos, cuidar das pessoas que a gente ama é um exemplo, porque simplesmente são essas pessoas que vão nos dar apoio. Outros processos são ter válvulas de escape, como meditar, fazer terapia, desenhar, fazer um diário, dançar, cantar, achar coisas que nos tirem de um estado de sofrimento e que vão auxiliar no processo de resiliência”, cita Hamuche.
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Aline Lira, psicoterapeuta e integrante do Grupo de Trabalho (GT) Juventude, Resiliência e Vulnerabilidade da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP), complementa informando que ninguém vive a resiliência sem um momento de trauma.
“Ninguém vai viver a resiliência se não passar por uma situação adversa, e ela é construída na medida em que vou entrando numa rede de recursos interacionais, chamado de fatores de proteção. São, por exemplo, ter uma rede de apoio, como família e amigos, e que vão auxiliar no enfrentamento dos desafios”, explica Aline.
Ainda conforme a psicoterapeuta, o processo para adquirir um estado resiliente também requer algumas estratégias individuais. A especialista aponta que pessoas cujos pensamentos são mais otimistas, são mais esperançosas, que acreditam em si mesmas e se mostram flexíveis têm maior resiliência. Pessoas expansivas, que podem buscar uma rede de apoio, também têm maior facilidade no processo.
Janette Barbosa, 30, nasceu e foi criada em National City, na Califórnia, Estados Unidos, em um bairro de baixa renda do condado de San Diego. Atualmente, ela mora em Pittsburgh, na Pensilvânia, e trabalha em uma loja de presentes chamada “Love, Pittsburgh”.
Ela conta que poderia começar a falar sobre sua história de muitas formas, mas escolheu a que possui a educação e as artes como os pilares principais para a sua formação. Na década de 1980, os pais dela imigraram do México para os Estados Unidos. Ambos sem formação no ensino médio, trabalharam muito para sobreviver. “Mesmo trabalhando arduamente, era difícil navegar para fora da pobreza sem os recursos necessários. Há tanta coisa que afeta a capacidade de 'subir na vida', como condições de trabalho, políticas de imigração e outras”, explica Janette.
Devido às dificuldades financeiras, muitas vezes, ela e a família tiveram de lutar para ter o que comer. Janette conta que seus traumas e a sua timidez fizeram com que ela se tornasse uma jovem introvertida e, consequentemente, a escola e a convivência social se tornaram mais um desafio a ser vencido.
Com a mãe trabalhando em dois empregos para sustentar a família, Janette se sentiu com a obrigação de lutar, por meio dos estudos, para alcançar melhor condição financeira no futuro. ”Comecei a me concentrar na escola, já que era a única coisa sobre a qual eu tinha controle”, narra. O banheiro do pequeno apartamento se tornou o quarto de estudos.
Ao longo da caminhada, ela enfrentou dificuldades financeiras e pessoais. Ao fim da quinta série, mesmo estudando muito, seu nível ainda era muito baixo em comparação ao que o sistema educacional estadunidense exigia. Janette conta que o seu professor da quinta série a ajudou a estudar fora do horário das aulas, o que a guiou para um ensino médio promissor.
“No fim do ensino fundamental, mantive meu compromisso com a escola e comecei a trabalhar aos 13 anos de idade para tentar ajudar financeiramente minha mãe. Eu costumava ir a bairros ricos para vender barras de chocolate de porta em porta”. Além de trabalhar e estudar, ela se envolveu em atividades extracurriculares.
Nos Estados Unidos, para se candidatar a uma vaga na faculdade, não basta apenas ter boas notas, como ocorre no Brasil. O estudante precisa ter um bom histórico fora da classe e possuir conduta exemplar. Janette estava mais do que preparada para ser aceita em qualquer universidade de seu país, mas ainda não tinha consciência disso. O pensamento girava em torno de garantir um melhor futuro para sua família.
Ela frequentou a University of California, Berkeley (UCB) e fez pós-graduação na Escola de Educação de Harvard, duas das melhores universidades do mundo. Depois da faculdade, surgiu um novo objetivo: estudar as dificuldades que os estudantes enfrentavam para chegar à faculdade. “Eu queria entender como estudantes, como eu, estavam chegando à graduação e, se não estavam, o que a instituição estava ou não estava fazendo para apoiar seu sucesso”, diz.
Pós-graduada, ela tatuou a palavra “resiliência” em seu braço esquerdo, como um lembrete das coisas pelas quais passou.
Contudo, o que parecia ser um sonho realizado, se tornou mais um desafio. Depois da pós-graduação, a jovem recebeu uma bolsa de estudos no Departamento de Educação da cidade de Nova York, a oportunidade perfeita para colocar em prática o que havia aprendido na universidade. O trabalho, porém, não a agradou. Janette e seu marido resolveram se mudar para Pittsburgh, e foi lá que ela descobriu novas paixões.
“Minhas trajetórias educacionais, mesmo através dos desafios e do caos, desenvolveram minha paixão pelo acesso e pela faculdade de estudantes de comunidades com poucos recursos e carentes neste país e no mundo. Esta paixão ainda é a base para minha visão de mundo, e espero encontrar uma maneira de trabalhar dentro dela novamente num futuro próximo”, diz Janette.
Atualmente, realizada com sua nova ocupação, ela relata a gratidão nutrida pelas pessoas que a aconselharam durante a adolescência: seu professor da quinta série, seu treinador, seu melhor amigo… O que não veio sem dificuldades.
“Enquanto me candidatava a uma vaga para pós-graduação, experimentei um nível de ansiedade maior do que o habitual e meu marido tinha ouvido falar dos benefícios do tricô, então decidi experimentar”, conta Janette, afirmando que o tricô faz parte de sua vida até hoje.
Além do tricô, ela possui um pequeno negócio de macramê e criou o seu próprio “cabide de planta”. Uma coisa levou à outra e, alguns meses depois, ela foi encorajada por sua família a começar seu próprio negócio enquanto ainda estava se candidatando a empregos em universidades. “O processo de contratação para estes empregos é tão longo que, enquanto esperava o retorno de uma universidade, escolhi candidatar-me a empregos no mundo criativo. Encontrei um na 'Love, Pittsburgh'”, conta.
Findados os processos, ela teve de escolher entre a vaga de emprego na loja e a vaga em uma universidade. “Após muita reflexão, e tendo tido meses de minha viagem com macramê, segui meu coração e disse não para a universidade e sim para a loja”, concluiu. (Euziane Bastos / Especial para O POVO)
"Foi a melhor decisão que tomei durante meu tempo em Pittsburgh. Sim, posso ter dois diplomas "chiques" em um campo que amo, mas também sei que o que faço agora, criar coisas, me faz feliz. Se você tivesse me perguntado quando eu era criança, se eu gostaria de fazer algo no mundo criativo como uma carreira, eu provavelmente teria rido. Por tanto tempo, imaginei que esse campo fosse apenas para pessoas ricas. Sou grata por estar vivendo isso agora, expandindo minha visão para meu negócio de uma maneira que teria visto inimaginável para mim, e simultaneamente pensando em maneiras de voltar ao mundo da educação. As artes se tornaram uma forma de cura através de traumas, estresses e ansiedades da vida, e agora, como uma carreira! A resiliência foi verdadeiramente possível por causa dos exemplos em minha família, orientação de meus mentores e por causa das artes. Portanto, sim, eu realmente acredito no poder das artes em se tornar mentalmente forte e ser capaz de ir além das situações difíceis. Estou feliz e é exatamente isso o que quero fazer."Janette Barbosa, Artista
No cotidiano, as situações de adversidade ocorrem a todo momento, seja no trabalho, na família ou nas relações pessoais. Crises financeiras, a perda de um emprego, um preconceito que é vivenciado, o fim do relacionamento, a morte de um familiar são exemplos das situações adversas do cotidiano e que podem ser enfrentadas com resiliência. Mas, como preparar os pensamentos — ou seja, a saúde mental — para situações que ainda não ocorreram e ainda estar preparado para problemas futuros?
Robson Hamuche explica que é preciso cuidar dos pensamentos antes de tudo. Ele cita que um pensamento gera um sentimento e gera uma ação. Se uma pessoa fica pensando que vai dar tudo errado, ocasionalmente se liga uma emoção ruim a ela — tristeza, desespero. Logo, a ação dela vai ser totalmente fora daquilo que ela esperava. O psicoterapeuta destaca algumas soluções: “É preciso cuidar dos pensamentos por meio de leituras, bons filmes, praticar a meditação, isto é, ativar as válvulas de escape. Isso vai fazer com que pensamentos positivos ocorram e consequentemente atitudes mais positivas também”.
Além disso, o terapeuta explica que quando uma pessoa consegue liberar as tensões, ela fica pronta e mais flexível para receber um choque. “Um trauma que a gente diz não é algo tipo uma pandemia, mas é, por exemplo: meu filho pode ter caído e eu preciso estar firme para acolhê-lo no peito para que ele se sinta seguro. Então, a gente precisa estar em equilíbrio para enfrentar isso melhor”, resume, separando processos mais mundanos de tragédias. Para isso, Robson destaca que as válvulas de escape precisam ser aplicadas diariamente e não apenas em situações em que há uma necessidade.
- Faça terapia;
- Medite;
- Escreva em um diário;
- Desenhe;
- Dance ou cante;
- Exercite-se regularmente;
- Cuide das relações pessoais
A prática em resiliência vem sendo buscada principalmente em empresas, a fim de que seus colaboradores estejam preparados para passar por situações adversas. É o que explica João Marcos Varella, psicoterapeuta e professor da Sociedade Brasileira de Resiliência (Sobrare). O profissional destaca, antes de tudo, que a resiliência é um comportamento, e por isso ela pode ser adquirida, aprendida e treinada. “Em grupos de trabalho, por exemplo, tem ganhos de liderança, de positividade e de comunicação com a aplicação da resiliência”, diz Varella.
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Na Sobrare, cursos de "Formação no Coaching em Resiliência" e "Resiliência para as dificuldades da vida" estão entre as especializações comportamentais. A partir de profissionais especializados na prática, é possível aplicá-la a outros grupos de pessoas, sejam elas comuns, que apenas querem adquirir o comportamento resiliente, como também para empreendedores e demais profissionais do âmbito empresarial.
João Varella explica que a especialização em resiliência sempre terá os mesmos motivos em diferentes campos; “O objetivo sempre será para diminuir o estresse para que as pessoas vivam melhor, além de melhorar a comunicação, a produtividade e diminuir a ansiedade, o bem estar em geral, ela é uma ferramenta para melhorar a saúde mental”.
Pesquisa mostrou como a Covid-19 influenciou o envolvimento dos funcionários e sua resiliência no local de trabalho. Os dados foram levantados pela ADP Research Institute, no fim de 2020, em 25 países em todo o mundo, incluindo o Brasil. No estudo, o engajamento é definido como uma atitude positiva e dedicada em relação ao trabalho e ao colaborador. Já a resiliência, é definida como a capacidade de resistir a condições desafiadoras no local e durante o trabalho. Na pesquisa, o total de 27 mil colaboradores foram entrevistados.
Em comparação com o estudo anterior, de 2018, a porcentagem de funcionários totalmente envolvidos em nível global diminuiu em nove países; sete registraram aumento no engajamento; dois ficaram estáveis e seis não tiveram dados registrados. No Brasil, houve um ganho de 4% — o nível atingiu os 18%. Arábia Saudita (21%), Índia (20%) e África do Sul (19%) lideram a pesquisa. Já Coreia do Sul, Taiwan e China são os países com menor taxa de engajamento, com 6%, 8% e 8%, respectivamente. Ou seja, países em desenvolvimento têm percentuais maiores que potências mais ricas, o que pode passar inclusive pela competitividade do mercado e alta taxa de desemprego.
Nos dados da resiliência no local de trabalho, apenas 15% dos colaboradores em todo o mundo são altamente resilientes. Os países com maior percentual de funcionários altamente ligados ao comportamento são Índia (32%), Arábia Saudita (26%) e Emirados Árabes Unidos (24%). Já os com a menor taxa são Taiwan, Suécia e Coreia do Sul, com 8% cada. No Brasil, a taxa de trabalhadores altamente resilientes chega a 16%. É uma tendência parecida.
A pesquisa mostra ainda como a Covid-19 influenciou o mercado por meio das mudanças no local de trabalho — maior uso de tecnologia, mais horas de trabalho, migração para o home office, demissões, diminuição de salário ou de jornada, incentivo a tirar férias antecipadas, promoções colocadas em espera, entre outras. Em conjunto, as medidas aumentaram o engajamento dos profissionais, além de tornarem eles mais resilientes diante das situações adversas.
Segundo Mariane Guerra, vice-presidente de Recursos Humanos da ADP na América Latina, "a experiência da realidade e a gravidade do problema ajudam a construir a resiliência no local de trabalho, fazendo com que as pessoas enfrentem seus medos e utilizem toda a sua capacidade de superação."
O terapeuta Robson Hamuche explica que a resiliência dentro do ambiente profissional está sendo procurada para obter resultados positivos, mas com uma preocupação maior com os colaboradores. “Antes, as empresas queriam realizar os resultados a qualquer custo, trabalhando horas sem parar, e hoje não é mais assim. Há uma preocupação de que os funcionários precisam estar saudáveis, que eles estejam felizes com as famílias deles, que eles estejam bem nos relacionamentos, amizades e lazer para que também eles possam fluir melhor dentro da sua profissão” conclui.
No estudo da ADP Research Institute, os objetivos principais foram: determinar o nível global de engajamento e de resiliência no local de trabalho, compreender os impulsionadores do envolvimento e resiliência no trabalho, além de capturar como as empresas mudaram em todo mundo e como, provavelmente, essas alterações permanecerão em suas vidas. Os níveis de engajamento e resiliência dos trabalhadores no local de trabalho permaneceram baixos em relação ao levantamento anterior. No entanto, uma das conclusões do estudo é que a resiliência no local de trabalho aumentou com a experiência direta em relação a Covid-19 — uma adversidade por si só.