A poucos dias para que a velhice (condição das pessoas com idade igual ou superior aos 60 anos) fosse incluída na 11ª versão da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), a Organização Mundial da Saúde (OMS) recuou da decisão. Alteração foi divulgada oficialmente no último dia 16 de dezembro. A OMS nomeou um comitê que se debruçou por três anos sobre o tema, apoiada por mais de 200 cientistas de diversos países, e tinha decidido incluir o termo a partir de 1º de janeiro de 2022, em substituição ao código R-54 (senilidade).
Elaborada pela agência especializada em saúde, a lista contém cerca de 55 mil códigos para doenças e causas de mortes, além de diversas orientações (veja o quadro explicativo abaixo). A decisão, no entanto, vinha enfrentando forte resistência no mundo todo desde que a ideia da OMS veio a público, em julho, e vários países se articularam para enviar alternativas ao texto original, principalmente os países da América Latina, com o Brasil em posição de destaque. Uma plataforma criada pela OMS recebeu sugestões e críticas ao novo CID 11 como um todo até o último dia 25 de novembro.
Representante da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), braço da OMS para as Américas, Juan Escalante, retrucou, à época da divulgação, que a CID não classifica a velhice como doença, mas faria a inclusão porque a classificação agrupa fatores que influenciam a saúde. A intenção, segundo ele, era substituir “senilidade” por um termo mais neutro, a partir da sugestão de especialistas. “A CID 11 contém categorias que vão além das doenças e incluem lesões, achados de exames e motivos de contatos com o sistema de saúde. A CID 11 também fornece categorias e padrões para registrar situações em que não é possível um diagnóstico claro”, ressaltou.
“Embora a discussão sobre a inclusão já estivesse acontecendo há algum tempo, essa decisão da OMS pegou muita gente de surpresa, eu inclusive”, confessa Cristina Hoffmann, coordenadora de Saúde da Pessoa Idosa do Ministério da Saúde. “De fato, a OMS não disse com todas as palavras que a velhice seja sinônimo de doença, mas quando se cria um código na CID para ela, que é a Classificação Internacional de Doenças, qual seria a outra compreensão, que não esta?”, questiona.
De acordo com o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia( SBGG), Marco Túlio Cintra, a decisão da OMS foi de entender que o termo em português e espanhol ficou pejorativo. “Eles mantiveram o conceito, mas alteraram o nome, colocaram “redução da capacidade intrínseca associado ao envelhecimento” e tiraram o nome “velhice”. Eu compreendo que eles entenderam isso: “Para quem não é nem de língua portuguesa nem espanhol, o nome anterior estava “ok”, e não havia essa questão pejorativa”. Mas, para nós, que temos língua portuguesa e língua espanhola, o termo era muito complicado. Então foi por isso que eles recuaram em relação ao nome”, destaca.
Ainda segundo Marco, o problema mais grave do termo anterior é de ir contra as políticas públicas, do etarismo (preconceito contra os idosos) e ageísmo (discriminação por idade). No entanto, Cintra acredita ainda que o novo termo ainda pode ter uma certa dificuldade das pessoas usarem. “Vai demandar as pessoas compreenderem do que se trata a redução da capacidade intrínseca. Ficou um nome grande para dizer que são pessoas que estão tendo as suas reservas biológicas reduzidas”, disse.
O vice-presidente da SBGG conclui que a decisão foi uma vitória por conseguir retirar o nome “velhice”. “Nós vamos evitar que tivesse um registro de CID que iria contra toda nossa campanha, nossa luta contra o ageismo. É nesse sentido que é uma grande vitória, pois íamos ter um nome pejorativo que poderia pôr tudo a perder de anos e anos de uma luta de várias pessoas que vinheram antes de mim que poderia ser pedido”, comenta.
Para Marco Túlio Cintra, que é ainda professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), uma das consequências imediatas seria um “apagão” dos dados e estatísticas sobre as causas das doenças e óbitos da população idosa. “Cerca de 30% das mortes já são registradas com a CID de causas desconhecidas. Com a inclusão do termo 'velhice', haverá uma invisibilização das mortes por diabetes, mal de Parkinson, AVC e outras doenças mais, porque os registros poderão ter somente a velhice como causa da morte. O prejuízo para a saúde pública será enorme, já que esses dados são essenciais para a destinação das verbas para a saúde, por exemplo”, aponta.
O geriatra destaca ainda os efeitos sociais da inclusão do termo: “O principal é o ageísmo, que vê as pessoas idosas como doentes e debilitadas, e ignora que elas possam ter vidas ativas, que consigam trabalhar, se relacionar com outras pessoas e se divertir. Seria um verdadeiro desserviço e desrespeito a essa população”, explica.
Há, no entanto, quem defenda a novidade, principalmente a indústria antienvelhecimento, que movimenta bilhões de dólares prescrevendo procedimentos (muitos sem base científica) com o pretexto de deter o avanço do envelhecer. Com um código que permita o enquadramento da velhice como doença, os especialistas ouvidos para esta reportagem apontaram que seria possível justificar várias dessas ações. “Não faltará quem se valerá dessa inclusão para prescrever medicamentos, intervenções e supostos tratamentos”, afirma a socióloga Dalia Romero, mestre em Demografia, doutora em Saúde Pública e chefe do Laboratório de Informação em Saúde (LIS) do Instituto de Comunicação e Informação Científica em Saúde (ICICT/Fiocruz). Outra questão levantada pelos especialistas é sobre como os planos de saúde e empresas de seguro deverão lidar com idosos que procurem seus serviços, já que suas idades, por si só, já poderiam ser consideradas como doença pré-existente, se o CID fosse tomado ao pé da letra.
“Quem defende a inclusão argumenta que assim será possível conhecer e comparar a situação de saúde das pessoas idosas, mas sabemos que o processo de envelhecimento é heterogêneo, ou seja, as pessoas não envelhecem da mesma forma. Portanto, se houver um código aplicado a partir da idade, já se comete um erro sério porque ela não é o único indicador da condição de saúde das pessoas”, destaca Cristiana Hoffmann, do Ministério da Saúde. “Outra justificativa é a de que essa inclusão permitiria a comparação entre idosos de diferentes países. Ela esbarra em outra questão, porque aqui no Brasil, é considerado idoso quem tem 60 anos ou mais, mas em Portugal, por exemplo, é só a partir dos 65 anos. É uma justificativa muito frágil por causa dessas diferenças”, acrescenta.
A aposentada Lúcia Campos Acioly, 67, deixou de trabalhar em um banco há cinco anos e agora trocou o expediente cheio de afazeres por uma rotina também agitada, mas que prioriza seu bem-estar físico e mental. Lúcia tem aulas de hidroginástica, pilates, informática e dança no Sesc Fortaleza, além de se dedicar ao voluntariado. “Estou fazendo algumas atividades que não tinha a oportunidade de fazer na minha mocidade, como a dança, por exemplo. Me sinto cheia de energia e com autonomia para fazer o que eu quiser”, afirma.
“Venho de uma família de pessoas que chegaram à velhice preservando a autonomia. É o caso do meu pai que, aos 91 anos, sabia todos os telefones da família de cor, além de tios e tias que passaram dos 100 anos e com a saúde muito boa. Por isso fico tão indignada com qualquer iniciativa de associação da velhice à doença”, lembra.
Lúcia acredita que os casos de preconceito contra os idosos poderiam aumentar. “Nós já passamos por algumas situações constrangedoras, como por exemplo, o tratamento discriminatório e as reclamações em filas e caixas de lojas. Não era para ser assim. A velhice tem muito a acrescentar para a juventude, como as experiências de vida vividas ao longo do tempo”, destaca.