Com apenas três semanas de vida, o filho de Jéssica Queiroz, 25, começou a apresentar problemas que não tinham motivo aparente. Uma assadura que só piorava, algumas dores abdominais sem explicação. Depois de consultas com seis pediatras que minimizaram as preocupações de Jéssica, uma profissional apresentou uma hipótese que foi comprovada pouco depois: alergia à proteína do leite de vaca (APLV). Rudá Queiroz, hoje com 1 ano, é uma criança com alta sensibilidade ao leite e derivados. As vidas da recém-mãe e do bebê precisaram ser moldadas para evitar reações alérgicas.
“Pra mim foi um mundo novo. Não conhecia nenhum bebê com alergia alimentar. Mesmo já tendo ouvido falar, não me atentei aos sinais, a maioria dos pediatras não se atentaram”, disse Jéssica. A alergista Ana Paula Moschione Castro, membro do Departamento Científico de Alergia Alimentar da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai), explica que uma alergia é uma manifestação do sistema imunológico “atrapalhada”.
“O nosso sistema de defesa passa a atacar, por características genéticas e algumas intervenções do próprio ambiente, coisas que são habituais e que a gente não deveria reagir. A alergia ao leite de vaca não é diferente. É um mecanismo de reação do sistema imunológico ao leite como um produto estranho”, afirma.
As reações podem ser diversas. Em algumas crianças, urticárias são comuns logo após a ingestão ou o contato com a proteína do leite. Para outras, o consumo do alimento desencadeia reações gastrointestinais, podendo levar ao sangramento do intestino. Também há bebês que, como Rudá, têm os dois tipos de reação. Se não manejada, a alergia pode causar problemas nutricionais, de desenvolvimento e até levar à morte por anafilaxia, uma reação alérgica aguda grave.
Com a informação da alergia do filho, Jéssica começou o processo de retirar totalmente o leite até da própria dieta, pois ela não queria deixar de amamentar Rudá devido aos benefícios do aleitamento materno. Jéssica conta que fez um diário alimentar, onde estudava todas as reações do filho a cada alimento que ela tinha contato. Além de retirar o leite da alimentação, ela precisou afastar todo e qualquer produto com a proteína alergênica.
Já a suspeita de que Noah Santos, filho da enfermeira Karine Ellen Santos, 32, tinha APLV veio apenas na fase de introdução alimentar. Com uma filha de 8 anos alérgica a leite, glúten e soja, os sinais demonstrados por Noah, de 1 ano e 7 meses, foram preocupantes para a mãe. “Ele ficou com muita diarréia, umas 15, 20 vezes ao dia, acabou desidratando”, conta.
A saúde de Noah só estabilizou após a entrada do bebê no programa de assistência a crianças com APLV do Governo do Ceará, que distribui latas de fórmula específicas para alérgicos. “Agora ele está adoecendo bem menos”, comenta Karine. O leite especial é uma das formas de manter a nutrição das crianças alérgicas. O bebê também é acompanhado por uma nutricionista e uma gastropediatra.
Apesar de ser comum a diminuição da alergia com o tempo e algumas crianças chegarem a ficar curadas, a filha de Karine, Ana Júlia, ainda convive com as restrições alimentares aos 8 anos, mas em menor grau. “Ela tem consciência, já está bem acostumada. Quando alguém oferece [comidas com leite], já recusa.”
“A gente não nasce pronto, várias das nossas coisas vão amadurecendo ao longo da vida, como o amadurecimento do sistema imunológico e trato intestinal”, afirma a médica alergista Ana Paula.
Para identificar a alergia, é preciso retirar totalmente o leite da dieta, mas é necessário, segundo Ana Paula, fazer a reintrodução da proteína para ter certeza de que ela é a que está causando as reações. Esse processo se chama "teste de provocação".
Ana Paula relata que não há uma pesquisa nacional que mostre dados sobre o número de diagnósticos, porém, em sua vivência médica, a especialista nota um aumento dos casos nas últimas duas décadas.
O tratamento de APLV é constituído pelo contato zero com a substância e a espera da estabilização do sistema imunológico. Em casos mais graves, processos de dessensibilização são aplicados, com acesso controlado ao alérgeno até que o desenvolvimento de tolerância seja alcançado.
Seja em mingaus, em vitaminas de fruta ou iogurtes, o leite está presente em diversos alimentos considerados benéficos para crianças. Apesar de conter nutrientes importantes para o desenvolvimento nessa faixa etária, esse não é o único alimento que pode proporcioná-los. Segundo a vice-coordenadora do curso de Nutrição da Universidade Federal do Ceará (Uece), Sônia Vieira de Castro, o leite não é essencial para a dieta infantil.
Quando uma criança tem alergia ao leite, excluir ele e seus derivados da alimentação é necessário. No entanto, com o acompanhamento de uma nutricionista, é possível encontrar maneiras de substituir fontes de nutrientes como o cálcio. “O leite não é a única fonte de cálcio, o mercado o coloca como fonte importante. Mas as pessoas vivem muito bem sem tomar leite”, explica a nutricionista.
De acordo com Sônia, crianças de 1 a 3 anos devem ingerir de 500 a 700 miligramas (mg) de cálcio por dia, em média. Como fazer isso sem a ingestão de leite? A nutricionista recomenda alimentos como tofu, castanha do Pará e leites vegetais. Para quem também tem alergia a esses alimentos, que são comuns em conjunto com a APLV, verduras verde-escuras, como espinafre, couve, alfafa e agrião podem ser uma opção.
Leguminosas como feijões e grão de bico também são ricas em cálcio, além de frutas como laranja, kiwi, goiaba e uva. Sônia atenta para o cuidado com as quantidades desses alimentos ofertadas para crianças. Orientação profissional pode ser necessária.
O que uma salsicha, um comprimido de remédio, um balão de festa e tinta guache têm em comum? Todos são produtos que podem ter traços de leite. Isso acontece porque o leite tem proteínas com propriedades utilizadas em muitas áreas da indústria. Para algumas crianças com alta sensibilidade para reações alérgicas causadas pela proteína do leite, evitar esses produtos pode ser necessário.
De acordo com a engenheira de alimentos e especialista em laticínios, Juliane Gasparin Carvalho, as proteínas do leite, como a caseína, podem ser utilizadas na elaboração de diversos produtos no mercado. Processos de aeração, responsável pela fofura de um bolo, por exemplo, pode ser feito com leite. A emulsificação, junção da gordura com a água, em linguiças, salsichas e mortadelas, também pode ser feita utilizando a proteína do leite. Além da gelificação, processo que deixa o pudim com textura gelatinosa.
Outro fator que dificulta a vida de quem vive com APLV é a incrustação da proteína do leite em utensílios. “Quando você faz um alimento na panela, você aquece o leite e ocorre a incrustação. É quando pega no fundo, quando fica nas paredes da panela. Com o tempo isso vai aumentando. Por mais que lave, a proteína acaba ficando depositada no utensílio, devido ao processo de desnaturação”, explica Juliane.
É por isso que Jéssica Queiroz, 25, precisou comprar um novo kit de panelas após descobrir que seu filho Rudá tinha APLV. Quando viaja entre Manaus, onde mora com o marido, e Fortaleza, onde a família dela reside, precisa trazer todos os utensílios para fazer comidas para o neném. Comer fora ou viajar, por enquanto, está fora dos planos da família.
No aniversário de 1 ano de Rudá, com a ajuda de familiares, Jéssica conseguiu fazer um cardápio totalmente apropriado para as restrições alimentares dela e do bebê. Bolo de melancia e espetinho de fruta fizeram parte do piquenique organizado para a família e amigos. “Para mim não fazia sentido que o aniversariante e a mãe dele não pudessem comer as comidas da festa”, disse.
Raquel Borges, ao ver a dificuldade para encontrar alimentos seguros para o filho também alérgico, resolveu entrar no ramo alimentício para pessoas com restrições. Ela é sócia-proprietária há oito anos da loja SOS Alergias Fortaleza, que produz apenas alimentos para pessoas com alergias alimentares. Além da comida do dia a dia, bolos de aniversários, salgadinhos, brigadeiros e comidas típicas são os mais pedidos.
“Comida não é só o alimento, não é só a nutrição, é parte da família junta, socializando. A gente tenta proporcionar esses momentos de união em torno do alimento, para que não seja aquela coisa à parte, para que não seja tão mais sofrido”, afirma. Na produção dos alimentos, os cuidados para evitar a contaminação vão desde a proibição de produtos com leite, ovos e oleaginosas (como castanhas, amêndoas, etc.) até a criação de regras rígidas para a higiene adequada dos uniformes dos funcionários da cozinha.
A alergia ao leite acontece devido a uma reação do sistema imunológico que ataca o leite, causando reações cutâneas, gastrointestinais e até respiratórias, podendo levar à morte. Já a intolerância à lactose vem da dificuldade do corpo de processar o açúcar do leite, a lactose, devido a falta da enzima que “quebra” suas partículas, a lactase.
A intolerância à lactose causa desconforto estomacal, mas não gera risco de morte. Produtos lácteos sem lactose não podem ser consumidos por pessoas com alergia ao leite, pois ainda contêm as proteínas que causam as reações alérgicas.
Saber o que procurar no rótulo é essencial para entender quais substâncias presentes naquele produto podem ser derivadas do leite. Confira alguns dos termos utilizados:
Leite
Leite em pó
Leite reconstituído
Leite evaporado
Soro de leite reconstituído
Creme de leite
Leite condensado
Lactoglobulina
Lactose
Lactulose
Leitelho
Manteiga
Aromas artificiais (manteiga, queijo etc)
Nata
Queijo
Iogurte
Kefir
Sorvete
Soro
Soro de leite
Caseína
Hidrolisado de caseína
Caseinato
Coalho de caseína
Lactoalbumina
Fosfato de lactoalbumina
Lactato de sódio ou lactato de cálcio
3.337 pessoas são assistidas pelo Programa de Alergia à Proteína do Leite de Vaca no Ceará. Os pacientes são atendidos por gastropediatras, alergistas, nutricionistas, enfermeiros e psicólogos do Sistema Único de Saúde (SUS). As famílias recebem ainda doações de latas de fórmulas especiais para os alérgicos. Para integrar o programa, é preciso pedir encaminhamento em um posto de saúde.