“Reorganizar o modo de vivenciar seu próprio corpo". É assim que o psicólogo Lucas Bloc, 37 anos, define a dificuldade de lidar com uma lesão que o deixou paraplégico por meses. A condição enfrentada por ele pode afetar qualquer tipo de pessoa e, muitas vezes, traz forte impacto emocional ao paciente — entre eles o sentimento de medo e insegurança. Em alguns casos, como o de Lucas, a lesão pode afetar as funções motoras e sensitivas impedindo a pessoa de andar.
Entre as lesões no canal vertebral, a síndrome da cauda equina — doença rara que, ao ser diagnosticada, necessita de cirurgia de coluna com urgência — ganhou notoriedade após o cantor cearense Wesley Safadão passar por uma operação de hérnia de disco necessária após sintomas ligados à condição. À época, ele chegou a correr risco de necessitar de uma sonda urinária.
A cirurgia de urgência é, segundo especialistas, um procedimento capaz de reduzir os problemas a longo prazo do paciente com lesão medular. A síndrome da cauda equina em si acontece a partir de uma compressão dos nervos que saem da medula e a operação é feita para descomprimir esses nervos.
“A nossa coluna vertebral tem um canal por onde passa a medula e dela saem os nervos para ir para todos os músculos e órgãos do nosso corpo. Na região lombar "Parte inferior da coluna vertebral, ligada às cinco vértebras mais abaixo. É a parte que sustenta maior carga, o que gera lesões crônicas, como hérnias de disco" , não existe mais medula, apenas os nervos. Esses nervos agrupados são chamados de cauda equina por ter aparência parecida com um rabo de cavalo, e vão descendo até o sacro "Osso triangular na base da coluna" . Qualquer coisa que aperte esse cano e esses nervos é chamado de Síndrome da Cauda Equina”, explica o neurocirurgião e membro da Sociedade Cearense de Neurologia e Neurocirurgia (Socenne), João Paulo Mattos.
Ainda segundo o neurocirurgião, outros sintomas da síndrome incluem dor lombar localizada e intensa; dor em ambas as pernas que começa nas nádegas e percorre a parte de trás das coxas; entorpecimento na virilha ou área de “anestesia em sela” e comprometimento do intestino e bexiga. Este último quadro pode evoluir a crônico caso a patologia não seja tratada o quanto antes. Outro efeito possível efeito da síndrome é a paraplegia.
De acordo com o médico ortopedista e traumatologista e cirurgião de coluna Romero Bilhar, a síndrome pode se apresentar de duas formas: aguda ou crônica. A primeira delas se apresenta rapidamente após uma lesão pontual na região, desenvolvendo sintomas em questão de horas. "Esse é o caso que realmente necessita intervenção o mais rápido possível porque o tempo de lesão do nervo está relacionado com a possibilidade de recuperação rápida", explica o cirurgião.
A forma crônica é a menos comum. Romero explica que esse cenário passa pelo não tratamento da doença na forma aguda. "É um paciente que teve uma lesão e não foi resolvida quando teve o diagnóstico agudo ou não chegou a ser diagnosticado. Isso pode estar relacionado a diversos fatores, como a lesão passar despercebida ou em pacientes que não tinham recursos para diagnosticar, por exemplo", pontua.
Assim como no caso de muitas outras doenças da coluna, a síndrome da cauda equina não tem uma causa específica estabelecida para motivar a condição. De acordo com o neurocirurgião e diretor da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia (SBN), Wuilker Knoner Campos, as principais causas são a hérnia de disco — tendo em vista que o deslocamento discal pode comprimir os nervos da região lombar —; além de tumores e traumas, como fraturas, no local.
Um estudo epidemiológico da síndrome da cauda equina publicado na revista Acta Ortopédica Brasileira, em 2013, aponta que a principal causa encontrada para a condição é a hérnia de disco (69%), seguido por tumor (16%) , trauma (10%) e acidente vascular (5%).
Tradicionalmente, o tratamento de hérnias de disco é conservador, com repouso, uso de medicamentos para dor e fisioterapia. A cirurgia surge quando as demais medidas se provam insuficientes. O diagnóstico da lesão e a combinação de dores intensas na região lombar, além da falta de sensibilidade na coxa e na parte pélvica, porém, indicam que o quadro pode ter desencadeado a síndrome da cauda equina aguda, como no caso do psicólogo Lucas Bloc.
Em novembro de 2021, Lucas sentiu intensas dores na região lombar, que pareciam ir além das ligadas a hérnia de disco diagnosticada há alguns anos. “Veio uma dor muito forte também atrás das duas pernas e começou a ficar mais forte ao ponto de eu chorar de dor porque era uma dor diferente do que eu já sentia”, conta.
Após uma ressonância magnética, foi constatada uma segunda hérnia, que desencadeou a síndrome da cauda equina. Após o diagnóstico, Lucas relata que foi necessária uma cirurgia de emergência, que ocorreu em menos de 48 horas. “Na maioria dos casos, a cirurgia precisa ser feita o mais rápido possível porque quanto mais tempo demora há mais tendência de danos irreversíveis”, relata.
Os sintomas da doença apareceram de forma rápida e intensa. “No momento do diagnóstico, eu já estava sem andar, já sentia muita dormência e sentia muito medo de uma paraplegia. Isso veio com muito medo de não voltar a andar e não voltar a fazer coisas básicas, como urinar, que estavam disfuncionais no momento”, disse Lucas.
Conforme o cirurgião de coluna Romero Bilhar, qualquer sintoma compressivo da região lombar pode provocar a síndrome, cuja forma mais completa pode resultar em paraplegia. “(É quando) Eu não tenho mais movimento e não tenho sensibilidade das pernas, além de dormências nas partes íntimas que chamamos de anestesia em sela e incontinência ou retenção urinária e fecal. A síndrome completa se dá por todos esses sintomas”, pontua o médico, que ressalta que quanto mais rápida for a cirurgia, maior a possibilidade de o paciente reverter o quadro neurológico.
Para Lucas, uma dificuldade para lidar com a síndrome era lidar com a incerteza sobre o prognóstico de reabilitação após o procedimento cirúrgico. “Minha vida mudou de cabeça para baixo e o tratamento começou a fazer parte da rotina diária”, conta.
O processo de reabilitação de Lucas teve quatro fases. Até março, ele se movimentava exclusivamente em cadeiras de rodas. Até abril, já conseguia usar um andador. Maio foi o mês de experimentar a bengala. Desde junho, em fase mais livre, passou apenas a usar uma órtese no pé esquerdo, mais comprometido pela síndrome. “Foi uma evolução aos poucos. Eu tive uma primeira fase que foi muito atravessada pela dor. Nessa segunda fase, a evolução era bem mais visível, foi onde eu passei a conseguir fazer as coisas”, lembra.
Especialista em fisioterapia neurológica, Fátima Arcanjo, que acompanha o caso de Lucas na Clínica Neuroser desde dezembro de 2021, explica que o tratamento neurofuncional é essencial para reverter danos da síndrome. “Se o paciente perdeu a sensibilidade, a fisioterapia vai entrar com tratamento neurossensorial, além de trabalhar a musculatura pélvica, que vai tratar as disfunções urinárias”, informa.
Além disso, a fisioterapeuta explica que, antes de iniciar o tratamento, os pacientes precisam ter em mente que cada um tem o seu tempo de reabilitação, devendo, assim, evitar comparações.
Além do processo fisioterapêutico, o cuidado com a saúde mental foi essencial para atravessar o processo, disse Lucas. Organizar o corpo e a mente para enfrentar a reabilitação, segundo resume. O psicólogo lembra que um dos processos mais difíceis de você lidar com esse tipo de lesão é “reorganizar o modo de vivenciar seu próprio corpo”.
“Aprender a viver nessa nova corporeidade, para mim, é uma das coisas mais difíceis. Você está sempre, de alguma forma, tendo um cuidado para não sentir dor, eu tenho medo de fazer algumas coisas, então é uma reorganização que é exigido em vários níveis, como no laboral, do trabalho, o social, da relação com outras pessoas, no modo que você é visto pelo outro”, exemplifica Lucas.
Ao lembrar da primeira fase da reabilitação, o psicólogo destaca que “era muito impactante uma pessoa me ver de cadeiras de rodas”. Ele ainda relembra que ficar sem andar passava pela sua cabeça todos os dias. O que mudou isso foi o apoio familiar e de amigos, que ela destaca como fundamental. O psicólogo é pai de duas crianças, Benjamin, de 5 anos, e Olívia, de 3 meses, que nasceu durante o processo de reabilitação.
Segundo o psicólogo, uma das motivações dele era conseguir pegar a filha de pé, sem ajuda de bengala ou de outras pessoas. “Eu tinha isso como meta de que em abril eu tinha que estar de pé porque eu queria pegar ela em pé, isso para mim era muito forte, e aí eu consegui. Foi muito emocionante, tanto do nascimento dela como de ver que eu estava saindo de uma condição muito vulnerável, muito difícil, era como se eu tivesse atingido um objetivo”, afirma.
O fato de nunca ter ouvido falar da síndrome da cauda equina e nunca ter imaginado passar por essa situação aumenta a atenção maior para o cuidado com a saúde, relata o psicólogo. Hoje, os objetivos englobam a luta para conseguir voltar a andar o mais próximo possível do que era antes da cirurgia, cuidar da saúde e poder compartilhar e viver momentos com os filhos, como andar de bicicleta e jogar bola, sem deixar a saúde de lado.
Para prevenir traumas na medula, o cirurgião e diretor da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, Wuilker Knoner Campos, ressalta a importância do cuidado com a coluna desde cedo, além da cautela com a saúde em geral. O médico destaca que é necessário manter uma atividade física regular, principalmente exercícios que fortaleçam a região lombar da coluna, como os tradicionais abdominais. Outras orientações são evitar pegar pesos excessivos, buscar sentar em posições corretas e fugir do tabagismo, pois a nicotina prejudica e enfraquece a estrutura da coluna.
Prevenção da cauda equina
O neurocirurgião e membro da Sociedade Cearense de Neurologia e Neurocirurgia (Socenne), João Paulo Mattos, orienta a pessoa a procurar uma emergência assim que notar sintomas, de forma a receber um diagnóstico por imagem. O histórico clínico do paciente em relação a queixas de dores também pode ajudar a determinar os riscos. No Ceará, as pessoas com sintomas podem procurar hospitais da rede pública para diagnóstico e, posteriormente, procedimento cirúrgico.
Nos casos de reabilitação, o principal programa para neurorreabilitação em lesão medular ocorre na Rede Sarah, além de opções qualificadas na rede particular. Em Fortaleza, a unidade é localizada no Hospital Sarah Kubitschek, no bairro Passaré.
Para atendimento na rede pública, uma série de requisitos são necessários, diante da limitação de vagas. É necessário que o paciente esteja apto para reabilitação, apresentando condições clínicas favoráveis, como ter concluído o tratamento da fase aguda do trauma; ter concluído o tratamento do tumor da medula espinhal, entre outros critérios. O paciente deve solicitar atendimento pelos canais de comunicação da rede no portal Rede Sarah. Após solicitação, a instituição retorna para o paciente informado as demais orientações para iniciar a reabilitação.