Os casos detectados de esclerose múltipla (EM) têm se tornado cada vez mais frequentes. De acordo com o último mapeamento mundial feito pela Federação Internacional de Esclerose Múltipla, de 2013 a 2020, os diagnósticos de EM saltaram de 2,3 milhões para 2,8 milhões. Contudo, apesar dos números, há ainda estigma e desinformação sobre a condição.
No Brasil, segundo a Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM), aproximadamente 40 mil brasileiros são acometidos pela doença atualmente. A esclerose múltipla (EM) é uma doença neurológica, crônica e autoimune, que é acarretada por uma alteração do sistema imunológico. Essa mudança produz a ativação de diversas células, que promovem danos na mielina, uma estrutura que facilita a rápida comunicação entre os neurônios.
A mielina está presente em várias partes do corpo: olhos, cérebro, tronco e medula, por exemplo. Dessa forma, a EM pode causar vários sintomas distintos, como alteração visual e de equilíbrio, fraqueza muscular, tremores e problemas cognitivos. Além disso, pacientes também podem apresentar dificuldades no caminhar e urinar.
Gabriela Joca Martins é neurologista e atua há mais de dez anos no Centro de Tratamento de Esclerose Múltipla do Hospital Geral de Fortaleza (HGF). Ela explica que, infelizmente, é comum a demora de um diagnóstico correto da doença aos pacientes.
“Os sintomas iniciais, em geral, diminuem com alguns dias ou semanas. Dessa forma, muitos nem chegam a procurar um médico”, explica a especialista. Ela ainda comenta que os sintomas variados entre os pacientes também dificultam a detecção da doença por profissionais da saúde.
Em geral, a doença atinge principalmente jovens adultos, na faixa de 18 a 50 anos, mas também pode atingir crianças e pessoas de mais idade. Apesar de também ser registrada em homens, a esclerose é mais comum em mulheres. “Muitas vezes médicos associam os sintomas reportados por mulheres como resultantes de estresse, por ansiedade. Isso também dificulta o diagnóstico”, comenta a neurologista.
O diagnóstico precoce é fundamental para o bem-estar do paciente com a doença. “Hoje, temos várias medicações disponíveis. Se um paciente tiver um tratamento cedo, ele terá uma excelente qualidade de vida. Ele terá uma vida normal, dentro da realidade de quem tem esclerose múltipla”, constata Gabriela Joca.
O tratamento é feito através de drogas que controlam o sistema imunológico. As medicações podem ser orais ou injetáveis. Por conta da EM ainda não ter cura, a manutenção do tratamento é realizada ao longo de toda a vida do paciente.
De acordo com a neurologista Gabriela Joca, o tratamento correto da esclerose evita a progressão da doença com outros surtos, quando surgem novos danos no cérebro. Nesses episódios, é possível que pacientes notem o retorno ou o surgimento de novos sintomas.
Em uma fase onde as principais decisões da vida são tomadas, tanto na vida profissional quanto pessoal, o diagnóstico de esclerose múltipla pode ser impactante para muitas que ainda não possuem conhecimento sobre o que é a doença.
A jornalista Carolina Campos, 44, convive com a doença desde setembro de 2012. Ela relata que o primeiro sintoma da EM que notou foi cansaço, mas percebeu que algo estava mesmo fora do normal quando dormências surgiram em partes do corpo.
“Começou na mão, no dedo mindinho, foi passando por um segundo pro terceiro dedo. E aí começou na zona da costela, tudo do lado esquerdo. Era um formigamento. Eu pensei: meu Deus, mas que será isso?”, relatou.
A jornalista explica que os sintomas não pararam de progredir. Após passar por exames de ressonância magnética, foi constatada a presença de lesões cerebrais e cervicais. Carolina então foi direcionada para o tratamento da EM. Ela explica que, a princípio, ficou preocupada que a condição pudesse atrapalhar seu desempenho no trabalho, já que passa bastante tempo digitando no computador.
“No início, por três anos, eu tomava injeções três vezes por semana, que eu mesma aplicava. Depois mudou o meu tratamento, e agora eu estou tomando via oral. Eu tomo esse remédio duas vezes por dia. Eu recebo ele pelo SUS, graças a Deus”, conta.
Carolina Campos conta que sentiu receio de que a doença pudesse causar impactos no relacionamento com pessoas do seu ciclo social. “Eu tenho um namorado há 14 anos. Inicialmente, eu tinha medo de estar com ele e tipo prendê-lo com uma pessoa que não era normal”, relata.
O relacionamento se manteve firme e, ao contrário dos casos de mulheres que foram afetadas por problemas como a diminuição da libido, Carolina conta que não passou pela problemática. O diagnóstico, no entanto, influenciou em uma questão importante na vida do casal.
“Eu nunca tive o desejo de ter filhos. Mas eu acho que o peso de ter essa doença me fez repensar mais ainda nisso. Uma coisa é eu me preocupar só com a minha saúde, outra coisa é quando você tem um filho. Então, quando veio o diagnóstico, foi como se fosse uma certeza de que eu não queria ser mãe”, disse a jornalista, que explicou que o amor pela maternidade ela reserva para os sobrinhos.
Quando recebeu o diagnóstico, há 16 anos, o desconhecido também assustou Juliana Melo, 43. Na época com 27 anos, a paciente desconfiou que algo estava errado quando percebeu alguns sintomas, como embaçamento visual. “Parecia que eu tinha adquirido um astigmatismo de um grau muito alto de um dia para o outro. Era só de um olho”, conta.
Ela explica que, meses depois, também apresentou dormência nas pernas e dificuldade para andar. A paciente então foi a vários médicos, de várias especialidades, em busca de um diagnóstico. Após descartar diversas possibilidades, ela conseguiu o diagnóstico de esclerose múltipla.
Juliana conta que o período após receber o diagnóstico foi difícil. Segundo ela, inclusive, pensou que não conseguiria engravidar. “Na época, eu acreditava que não ia conseguir ter filhos. Eu já era casada, casei com 23 anos. Essa questão da gravidez em pacientes com esclerose ainda era um tabu. Mas aí o tempo foi passando, eu fui conhecendo mais sobre a doença.”
A médica Gabriela Joca explica que mulheres com esclerose múltipla não têm problemas de fertilidade, mas é necessário planejamento familiar quando o assunto é gravidez. “Alguns medicamentos não podem ser utilizados caso o paciente queira engravidar. Uma vez que uma paciente em idade fertil é diagnosticada, perguntamos se ela tem esse desejo. Isso já vai impactar na escolha de um medicamento.”
A médica ainda detalha que as medicações são alteradas para o período pré-gravidez, durante a gestação, mas também durante o aleitamento. Cuidados ainda devem ser tomadas quantos aos exames de rotina feitos pelos pacientes: “A gente indica que a paciente não engravide no primeiro ano pós-diagnóstico. Isso porque, nesse período, ela deve passar por muitos exames de ressonância e a gente sabe que, na gravidez, vários exames não podem ser feitos”, detalha Gabriela Joca.
A paciente Juliana Melo conta que, quando comunicou ao médico que gostaria de engravidar, recebeu total apoio. “Não tive problemas para engravidar, tanto é que hoje tenho três filhos. Do meu primeiro filho, eu engravidei no primeiro mês que eu tentei. Da minha segunda filha, foi no segundo”, comenta.
Apesar de não ter tido problemas resultantes da doença para engravidar, a paciente Juliana Melo conta que sentiu interferências na vida sexual. “A EM traz, naturalmente, uma fadiga crônica. É como se você já acordasse cansada”, conta Juliana.
De acordo com a médica ginecologista e sexóloga Jordana Parente Paiva, que há 20 anos também convive com a esclerose múltipla, além da fadiga, a doença também pode causar outros impactos na vida sexual de pacientes. "A dormência, que pode afetar qualquer parte do corpo, inclusive a vulva e vagina, dificulta a sensibilidade tátil e, consequentemente, retarda o orgasmo. Outro fator são as contrações musculares involuntárias, que podem vir a causar dor na relação sexual."
De acordo com Jordana, há ainda outros sintomas indiretos, como depressão e ansiedade, que, por si só, já são condições que impactam na vida sexual de qualquer pessoa. "Aquela paciente que tem uma depressão, ela já tem um humor deprimido para qualquer atividade da vida e, consequentemente, vai estar deprimida para a o sexo. Ela vai ter essa diminuição de libido", detalha a médica e sexóloga.
Para Jordana Paiva, as sequelas sexuais da EM podem ser amenizadas. “Eu sempre falo que a atividade física e uma boa alimentação são essenciais para qualquer condição de saúde. [É importante] você estar sempre fortalecendo a sua musculatura, já que a doença causa diminuição de força. Lembrar que a atividade física é algo que libera endorfinas, então isso aí já melhora o nosso humor. Consequentemente, vai melhorar a disposição para o sexo”, esclarece.
A sexóloga ainda pontua que as pacientes podem melhorar a vida sexual identificando outros pontos de prazer no corpo, que não são apenas os genitais. “Lembrar que o orgasmo é uma resposta cerebral. As pessoas podem chegar ao orgasmo só com a imaginação, pela visão também”, ressalta.
O autoconhecimento também pode vir a partir de pesquisa, em conteúdos sobre sexualidade, como livros e filmes eróticos, que não necessariamente são a pornografia. “Agendar encontros com o parceiro, que também não são necessariamente para o sexo, mas para aquele momento a dois. É para lembrar da época do namoro, principalmente para aqueles que estão em relacionamentos mais longos, estimulando esse momento de troca de afeto”, elucida Jordana.
Mesmo após o diagnóstico, a paciente Juliana Melo frisa que é possível lidar bem com assuntos como sexualidade, autoestima e beleza, mesmo que adaptações sejam necessárias. “Eu, por exemplo, gostava muito de usar salto alto. Mas, hoje em dia, eu não uso por não ter equilíbrio. Querendo ou não, você acaba tendo que abrir mão de algumas coisas para ficar bem”, explica.
“Sobre relacionamentos, eu me casei duas vezes. Meu primeiro casamento durou oito anos. Me separei e casei novamente. Quando comecei a namorar meu atual marido, ele já sabia da minha doença”, relata Juliana, que ressalta que é possível ter um relacionamento saudável mesmo com a esclerose múltipla.
No Ceará, o atendimento aos casos de esclerose múltipla são concentrados no Hospital Geral de Fortaleza (HGF), que pertence à rede estadual de saúde. Outra unidade que também oferece tratamento é o Hospital Universitário Walter Cantídio, que é de âmbito federal.
Hospital Geral de Fortaleza (HGF):
Endereço: R. Ávila Goularte, 900 - Papicu, Fortaleza
Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC):
R. Pastor Samuel Munguba, 1290 - Rodolfo Teófilo, Fortaleza