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Sozinho na multidão: as fronteiras entre solidão e solitude
Ciência e Saúde

Sozinho na multidão: as fronteiras entre solidão e solitude

Sentir-se solitário pode ser uma experiência que caracteriza a atualidade? Diretamente relacionada ao bem-estar, solidão é múltipla e tem repercussões coletivas
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Estudos apontam para a sociabilidade dos seres humanos e a necessidade de pertencimento a um grupo (Foto: Cuate / Freepik)
Foto: Cuate / Freepik Estudos apontam para a sociabilidade dos seres humanos e a necessidade de pertencimento a um grupo

 

Em um ambiente vazio ou cercado de pessoas; durante um período de conquistas ou enfrentado pelo luto; sem distinção de idade, classe social, raça ou gênero. Chegando como um misto de sensações como angústia, dor, medo e tristeza, a solidão pode vir para qualquer pessoa e em qualquer momento.

A psicóloga clínica Júlia Evangelista Mota Shioga aponta que existem diferentes modos de entender a solidão. “Uma delas implica compreender como um comportamento que envolve ações, sentimentos e pensamentos específicos de quem atravessa essa experiência”, afirma. No geral, o sentimento denota necessidade de distanciamento ou isolamento continuado do contexto social, comunitário e/ou familiar.

“O indivíduo pode inclinar-se nesse processo por diversas razões, dentre eles os quadros de transtornos de humor e estresse psicossocial e laboral. Algumas pessoas podem experienciar solidão por medo do julgamento, ansiedade social ou após vivências traumáticas, de ruptura, perda, rejeição e luto”, explica sobre fatores que trazem maior vulnerabilidade para esse estado emocional.

Estudos apontam para a sociabilidade dos seres humanos e a necessidade de pertencimento a um grupo(Foto: Cuate / Freepik)
Foto: Cuate / Freepik Estudos apontam para a sociabilidade dos seres humanos e a necessidade de pertencimento a um grupo

A solidão, nesse sentido, faz parte de uma tentativa de organização e elaboração psíquica frente ao esgotamento. “Sobretudo quando o indivíduo não consegue conexão com uma efetiva rede de apoio”, diz Júlia.

Segundo Vivian Loietes Prado, que estudou a solidão durante seu mestrado em Psicologia na Universidade de São Paulo (USP), humanos têm a tendência de lidar com qualquer fator estressor de acordo com as características de personalidade, podendo responder de forma racional-cognitiva ou apoiando-se na imaginação e fantasia ou, ainda, deixar-se levar por uma emoção que o desconecta da realidade. “Mas nem sempre nossas estratégias de enfrentamento são bem sucedidas.”

É possível que uma estratégia mal utilizada possa criar outra situação estressora, que se somará à situação original. “Em minha pesquisa identifiquei que as principais formas de lidar com a solidão são através da busca por entretenimento (games, livros e filmes), do isolamento (por iniciativa espontânea e individual), do abuso de substâncias (drogas lícitas e ilícitas), da compulsão alimentar e do consumo de pornografia ou sexo casual”, detalha. “Foram poucas as pessoas que relataram buscar apoio ou encarar aquele momento como uma oportunidade de se reconectar consigo mesmo.”

Solitude e solidão são conceitos associados, tartados como sinônimos, porém enquanto o primeiro é uma escolha, a solidão é um estado a que a pessoa se vê submetida e traz sesnsações negativas(Foto: johnny nguyen/unsplash)
Foto: johnny nguyen/unsplash Solitude e solidão são conceitos associados, tartados como sinônimos, porém enquanto o primeiro é uma escolha, a solidão é um estado a que a pessoa se vê submetida e traz sesnsações negativas

“Muitas pessoas não conseguem ficar sozinhas, mesmo que por curtos períodos, querem sempre uma companhia. Sentem um vazio insuportável com a solidão”, expõe a psiquiatra Lia Sanders. “Claro que todos nós precisamos da convivência social, mas os períodos de reclusão, ou de introspecção, não precisam se traduzir necessariamente em sofrimento. Há quem goste de estar consigo mesmo, desse estado introspectivo, sem sofrer com a solidão. Seria a chamada solitude.”

Para Vivian, a solitude “pode ser explorada como uma potência positiva e benéfica; um método facilitador da criatividade, de abertura para os próprios sentidos e de ampliação dos próprios significados individuais”. A pesquisadora explica que ela está diretamente relacionada à qualidade da sustentação emocional e das oportunidades que encontramos, seja no início ou no decorrer da vida, no conjunto formado pelo ambiente familiar e pela sociedade em que vivemos.

 

 

Pandemia, cenário político-social e redes sociais: contextos de uma epidemia de solidão?

“Estamos saindo de um momento político, social e sanitário de distanciamentos. O espírito comunitário se perde a cada dia que passa; inevitavelmente, há mais solidão. E nos deparamos com o crescimento de ansiedade, depressão e outros diagnósticos”, analisa a psicóloga e psicanalista Maria Andréia Pereira. O cenário é apontado por alguns especialistas como uma epidemia de solidão.

Andréia aponta ainda que “as redes sociais são um lugar onde enganosamente a gente tem a certeza de que não está só”. “Tudo se tornou remoto. Muita coisa boa veio, mas veio também mais afastamento. Pelas redes chega sempre muita coisa, mas nada tem cheiro, nada tem presença. O que a gente precisa é do contato, do vivido, da experiência”, continua a psicanalista, que também é especialista em Saúde Mental Coletiva.

Para ela o atual momento aponta para uma busca por se sentir bem, dormir, ter prazer. “E acredito que isso chega em um momento em que estamos tentando nos reinventar, mas ainda não entendemos o que vai ser de nós. Há uma ânsia de futuro e o sentimento do presente roubado. E o que é o presente se não for o real, o compartilhado?”, questiona.

A psiquiatra Lia Sanders diz que precisamos da convivência social, mas os períodos de reclusão, ou de introspecção, não precisam se traduzir necessariamente em sofrimento(Foto: Cuate / Freepik)
Foto: Cuate / Freepik A psiquiatra Lia Sanders diz que precisamos da convivência social, mas os períodos de reclusão, ou de introspecção, não precisam se traduzir necessariamente em sofrimento

Vivian concorda com tal entendimento e define a solidão como “uma resposta emocional sentida e percebida numa experiência onde há uma discrepância entre a qualidade das relações interpessoais que se deseja ter e aquela que atualmente se tem”.

Ela explica que o fato de os seres humanos serem essencialmente sociais leva a uma necessidade inata de pertencimento a um grupo. Isso converge no desejo de formar e manter relacionamentos interpessoais duradouros (uma rede de apoio, por exemplo).

“Para que isso aconteça, é preciso que ocorram interações frequentes e positivas, além de reciprocidade na preocupação com o bem-estar um do outro”, diz Vivian. Quem experiencia constantemente dificuldades ao formar ou manter relações interpessoais satisfatórias — ou seja não tem a necessidade de pertencimento atendida —, está mais propenso a sentir solidão, ansiedade, depressão e raiva.

 

 

Solidão leva a maiores riscos de doenças físicas

“O estudo da solidão nos permite explorar as influências sociais e emocionais que exercem impacto expressivo sobre ela. Evidências a denunciam como sendo uma ameaça à saúde e um problema crescente de saúde pública, inclusive”, afirma Vivian Loietes. “O malefício à saúde física de experienciar ou vivenciar a solidão de forma crônica equivale a fumar 15 cigarros por dia”, estima.

A solidão pode prejudicar o sono e alterar negativamente a imunidade. Ademais, a depender das formas de lidar com o momento, pode levar ao alcoolismo e ao uso de drogas. “O isolamento social e a solidão estão associados a sedentarismo e tabagismo, que são fatores independentes de risco para a saúde”, aponta Lia Sanders. “Também já foi apontada como um fator de risco independente para depressão na terceira idade e doenças cardiovasculares.”

Um estudo publicado em fevereiro de 2022 no The Journal of the American Medical Association aponta que mulheres com maior grau de isolamento e solidão têm maior risco de doenças cardiovasculares. Conforme os pesquisadores da Califórnia, os riscos são de 13% a 27% maiores que em mulheres com menor isolamento social e menor solidão.

Para os especialistas, há estratégias para conviver com a solidão(Foto: ante hamersmit/unsplash)
Foto: ante hamersmit/unsplash Para os especialistas, há estratégias para conviver com a solidão

Outro estudo, desta vez realizado no Reino Unido, analisou pesquisas feitas a partir de 16 bancos de dados e concluiu que a solidão está associada a um aumento de 29% no risco de doenças coronarianas e um aumento de 32% no risco de acidente vascular cerebral.

Prejuízos à saúde mental também são identificados, como estresse, baixa autoestima, depressão e transtornos de personalidade.

“Quando associadas a quadros de adoecimento psíquico, as reações que podem predominar são sentimento de impotência, humor deprimido e ansioso, baixo autoconceito, ideias catastróficas e pensamentos autodepreciativos”, completa a psicóloga Júlia Shioga. “Quando permanece por um intervalo mais continuado, a solidão pode trazer diversos prejuízos à saúde global, como perda de funcionalidade geral e perda dos laços sociais.”

 

 

Solitude, a paz de estar estar na própria companhia

Solidão e solitude são experiências que Marta Lima consegue definir bem em sua vida. “Entendo a solidão como uma condição associada à tristeza, à dor. Nesse sentido fez parte da minha vida em momentos pontuais como a perda de uma amiga muito querida em 1993 e, mais recentemente, com a perda da minha mãe em outubro de 2021”, conta. “Nessas ocasiões senti um vazio enorme.”

Já a solitude é “praticamente o estado de espírito” da economista. Aos 47 anos, ela afirma que o isolamento voluntário lhe traz felicidade. “Nunca gostei de conglomerados de pessoas. Sempre fui bastante seletiva com relação às pessoas às quais permito acesso à minha vida. Tenho poucos, mas verdadeiros amigos”, diz.

Com o passar do tempo, a companhia de bons livros, filmes e séries passou a ser mais interessante que a ida a espaços de convivência comum, avalia. “Lido muito bem com a solitude, na verdade, vivo em busca dela”, define ao mesmo tempo que reconhece a importância de momentos de socialização para atender a compromissos familiares e rever amigos queridos.

Segundo a psiquiatra Lia Sanders, a solitude mplica a busca de recolhimento e espaço para contato mais íntimo com seu próprio universo(Foto: austin mabe/unsplash)
Foto: austin mabe/unsplash Segundo a psiquiatra Lia Sanders, a solitude mplica a busca de recolhimento e espaço para contato mais íntimo com seu próprio universo

A dupla dicotômica também é compartilhada pelo coordenador de projetos de pesquisa de mercado Gabriel Siqueira. Aos 28 anos, ele mora sozinho há dois. Sua companhia são seus três gatos e o prazer de estar sozinho.

“A solidão em si é algo que sinto quando eu percebo ser muito distante do outro (de jeito, de cultura, de interesses..)”, afirma. Nesses momentos, seu refúgio é a solitude. “Tento ir pra esse lugar protegido, onde eu tenho espaço pra desenvolver sozinho. Ouvindo música, jogando, agarrando meus gatos, fazendo qualquer atividade que seja completamente do meu interesse e vontade e não envolva mais ninguém.”

Ele destaca também a autonomia trazida por esses momentos: “É a capacidade de me desenhar enquanto um indivíduo sem ter o julgamento de outros”. “A solitude se tornou um lugar de desenvolvimento; posso errar, ficar no ócio e ir contra as expectativas sem sentir medo.”

 


Como lidar com a solidão

Especialistas ouvidas pelo O POVO aconselham sobre como lidar com a própria solidão e com a solidão de pessoas próximas.

 

 

Solitude e solidão

Enquanto diversos dicionários apontam solidão e solitude como sinônimos, especialistas e a vivência humana mostram que há diferenças. Enquanto a solidão traz consigo sensações negativas, a solitude passa pela escolha de estar consigo mesmo em um momento de reflexão e de interiorização.

Conforme a psiquiatra Lia Sanders, “na solitude, não haveria a tristeza de uma solidão, mas o desejo de estar na própria companhia”.

“Solitude implica a busca de recolhimento e espaço para contato mais íntimo com seu próprio universo. Essa reação pode beneficiar o autoconhecimento e a autopercepção”, completa a psicóloga Júlia Shioga.

 

 

Ministério da Solidão

Em 2018, o governo do Reino Unido foi o primeiro do mundo a criar um Ministério da Solidão. Três anos depois, a preocupação com a saúde mental também levou o Japão a criar um órgão do tipo, responsável por criar campanhas e políticas públicas voltadas aos cuidados com a saúde mental e prevenção do suicídio. O Ministério também se responsabiliza pelos cuidados voltados às pessoas que vivem sozinhas.

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