Pessoas com Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD) frequentemente despertam o interesse popular. Seja pela inteligência ou curiosidade sobre o cotidiano desses indivíduos, o tema provoca discussões sempre que um novo caso aparece na mídia. Mais do que a polêmica em torno da categorização, a especificidade revela estigmas, preconceitos e a exclusão social que afeta aqueles que apresentam uma capacidade mental acima da média.
O termo “superdotado” serve para definir pessoas que têm um quociente de inteligência (QI) superior ao percentil 97, o que corresponde a 130 pontos nos exames realizados no Brasil. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que 5% da população mundial seja superdotada. Tais aptidões podem ser percebidas logo na primeira infância, como nos casos dos cearenses Augusto Bezerra e Emanuel Viana, 16.
Quando era bebê, Augusto teve um desenvolvimento psicomotor - ou seja, dos movimentos corporais - avançado, além de uma destreza para a leitura ainda aos três anos. Tudo indicava que a criança possuía uma excepcionalidade intelectual, mas os pais de primeira viagem Vaneuda de Paula e Raimundo Bezerra Lima Júnior acreditavam, no começo, que o comportamento do filho era comum entre os bebês daquela faixa etária.
“Ele sempre cumpriu os marcos determinados para idade um pouco antes. Como não tínhamos parâmetros com outras crianças, nós achávamos normal. Com três meses tem o marco de levantar a cabeça e ele fez isso aos dois meses. As crianças sentam aos seis meses e ele sentou aos cinco e andou aos nove meses. Com mais ou menos um ano e oito meses ele já reconhecia todas as letras do alfabeto e os números”, comenta Vaneuda, mãe do menino.
Os marcos do desenvolvimento servem para que os pais verifiquem se os bebês estão progredindo adequadamente. Esses pequenos registros são apresentados durante as consultas ao pediatra e auxiliam na identificação de algum problema que possa estar atrapalhando o avanço da criança.
Com a pandemia de Covid-19, apesar de ainda não ter sido matriculado em uma escola regular, os sinais da superdotação tornaram-se mais perceptíveis. Aos dois anos, Augusto juntava as sílabas de pequenas palavras e aos três apresentava uma leitura fluente – a nível do ensino fundamental. “Quando ele entrou na escola, no infantil III, já estava lendo. A professora relatava que durante as atividades para o reconhecimento das letras, Augusto lia o nome do objeto. A partir desse momento, ele passou a receber exercícios extras”, conta Lima Júnior, pai.
A preocupação com o bem-estar da criança fez com que os responsáveis contatassem profissionais das áreas da saúde e da educação, que pudessem orientá-los sobre a especificidade de Augusto e de que forma poderiam garantir uma melhor qualidade de vida ao menino. No contexto familiar, os pais mostram-se atentos às demandas intelectuais e psíquicas do garoto e buscam criar um ambiente onde ele sinta-se amado.
Já o processo de ajustamento pedagógico, visando o estímulo intelectual da criança, contou com atividades extra sala, adaptação curricular e mudanças de escola. As medidas tinham o intuito de atenuar a sensação de não pertencimento ou inadequação que atinge muitos daqueles que fogem à regra da “normalidade” mental.
Pessoas com AH/SD podem enfrentar exclusão e episódios de constrangimento no espaço que deveria propiciar a evolução intelectual. Justamente por não ocuparem o mesmo patamar cognitivo dos colegas, essas crianças e jovens sentem-se irritados/entediados quando estão em turmas cujos assuntos não lhes interessam ou já foram aprendidos. Tais comportamentos podem causar desavenças entre os alunos, dificultar as relações em sala de aula, atrapalhar o processo de ensino-aprendizagem e até prejudicar a parceria pais-escola. Isso ocorre, em partes, porque além de uma inteligência excepcional, indivíduos com AH/SD apresentam singularidades inerentes a essa condição.
De acordo com o livro didático-pedagógico da Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação – Seesp, publicado em 2007, essas são algumas características recorrentes em crianças com altas habilidades/superdotadas:
A psicóloga Jannayna Queiroz, doutoranda em psicopedagogia clínica grupal de crianças e adolescentes, destaca que indivíduos com AH/SD podem apresentar características relacionadas à psicomotricidade, questões artísticas e resolução de problemas, mas não necessariamente as três excepcionalidades juntas.
“Uma pessoa superdotada tem um alto percentual criativo. São pessoas que têm muita flexibilidade para lidar com as situações. Conseguem compreender e elaborar ideias de forma surpreendente. Geralmente, são pessoas que têm certa precocidade e tendem a aprender em uma velocidade maior”, salientou.
Como destaca a terapeuta, superdotados podem despontar em outros campos de atuação alheios ao espaço acadêmico. Augusto Bezerra, além da aptidão literária, também mostra-se feliz ao se referir às montadoras de carro, música e judô. As duas últimas áreas servem como atividades ocupacionais e auxiliam no bem-estar físico e mental da criança.
A música também aparece como uma das áreas de interesse do Emanuel Viana, de 16 anos, adolescente que compõe o time de superdotados. Cursando o segundo ano do ensino médio, além do estágio docência em uma escola de cursos profissionalizantes, o jovem compreende a superdotação como uma especificidade que não está restrita ao perfil acadêmico.
“Eu acredito que não exista apenas um tipo de pessoa superdotada porque, por exemplo, nem todo mundo nasceu para matemática. Têm pessoas que nasceram para a área de humanas e linguagens”.
Além da preferência pelos cálculos, Emanuel demonstra bastante destreza em física e tecnologia. Tanto na escola, quanto na instituição onde trabalha, focada no ensino de programação, design e marketing digital, o jovem busca unir suas habilidades aos campos de estudos tecnológicos para aplicação na vida real. Longe dos estigmas sociais, de que é um gênio e sabe de tudo, o estudante ressalta que não é um guru da física e “como jovem, ainda acredito que tenho muito mais a aprender daqui pra frente”.
Conforme a Escala de Inteligência Wechsler para Adultos, desenvolvida pelo psicólogo David Wechsler e aplicada por instituições para pessoas superdotadas, a classificação do quociente de inteligência (QI) ocorre da seguinte maneira:
Diante desta categorização, surgem organizações para pessoas com AH/SD, como a Mensa.
A Associação Mensa Brasil, entidade que reúne pessoas com altas capacidades intelectuais, possui 2,6 mil membros. Deste número, cerca de 200 são menores de idade e cinco* deles, como o Augusto Bezerra, estão no Ceará. A organização aparece como representante oficial da Mensa Internacional, organização criada na Inglaterra, em 1946, para indivíduos com alto QI. Como único requisito de entrada, a pessoa deve apresentar um quociente de inteligência acima de 98% da população em geral, comprovado por testes. A instituição, além de uma referência mundial, está presente em mais de 100 países.
Com a variedade dos tipos de inteligência, relacionadas às altas habilidades/superdotação, surgem teorias que buscam conceituar essas especificidades.
Na educação, os alunos superdotados precisam de uma atenção especial. Atividades complementares, adaptação curricular e até mudança de escola são medidas que visam à melhor adaptação dessas pessoas nas salas de aulas.
Ações adotadas variam de acordo com o país, pois cada um tem autonomia para estruturar essa forma de ensino. O Brasil tem 2.600 membros associados à Mensa Brasil, sociedade que reúne indivíduos com superdotação, mas não possui nenhuma escola exclusiva para alunos superdotados.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) define que os alunos frequentem aulas com os que não são superdotados. Para poderem estimular sua capacidade, complementam seu currículo com reforço escolar e atividades no contraturno.
Carlos Eduardo Fonseca, vice-presidente da Mensa Brasil, explica que a medida tem pontos positivos e negativos. “É interessante pela socialização das crianças com a superdotação. Pelo lado negativo, podem ser crianças (superdotadas) que atrapalham um pouco a sala de aula, porque têm demandas de ensino distintas daquelas crianças que estão correndo uma trilha mais natural de ensino.”
Os alunos superdotados devem ter acesso a um Plano Educacional Individualizado (PEI), e toda escola deve se preparar para atendê-lo. De acordo com dados do Censo Escolar 2020, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 24 mil estudantes estavam sendo atendidos pelo programa. O PEI se aplica a alunos com superdotação, alunos com deficiências, com transtornos globais de desenvolvimento e com dificuldades de aprendizagem.
A educação no Brasil é assegurada em uma divisão tripartite das competências. Ou seja, o Ministério da Educação (MEC) é responsável pelas universidades federais, o governo estadual está a cargo das escolas de ensino médio e o governo municipal tem a competência do ensino fundamental. Assim, todas essas instâncias devem ofertar o enriquecimento curricular para os alunos superdotados.
O vice-presidente da Mensa Brasil, Carlos Eduardo, explica que os dados do Censo Escolar 2020 leva consideração apenas as pessoas com altas habilidades acadêmicas. Ou seja, não inclui outras habilidades como a artística, a esportiva ou de liderança. “Estamos a uma distância muito grande do pleno atendimento desse direito de crianças e adolescentes”, afirma.
Para garantir o acolhimento em todos os níveis da educação, a população deve buscar seus direitos junto à escola e às Secretarias de Educação dos municípios. (Mariana Fernandes/Especial para O POVO)
*Número atualizado em 26 de maio de 2023