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Rara, progressiva e hereditária: conheça a doença de Huntington
Ciência e Saúde

Rara, progressiva e hereditária: conheça a doença de Huntington

Região com maior incidência da doença no Brasil é localizada no Interior do Ceará. Dia Nacional da Conscientização da Doença de Huntington foi comemorado pela primeira vez nesse dia 27 de setembro
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O neurologista Gustavo Franklin detalha as características da doença de Huntington  (Foto: Jonas Adriano)
Foto: Jonas Adriano O neurologista Gustavo Franklin detalha as características da doença de Huntington

A identificação correta de uma doença rara costuma demorar anos, passando por inúmeros médicos e até diagnósticos errados. No caso da doença de Huntington (DH), a “odisseia do diagnóstico” chega a durar gerações. O principal sintoma da doença é a coreia, que são movimentos involuntários e irregulares — o que a faz ser comumente confundida com doença de Parkinson.

As manifestações também são de ordem psiquiátrica, como ansiedade, impulsividade, compulsões e depressão — esta atinge até 50% das pessoas com Huntington. Há também sintomas cognitivos, que afetam memória, atenção e raciocínio. A região com maior incidência da doença no Brasil é registrada em quatro municípios no Ceará: Pires Ferreira, Cruz, Ibiapaba e Senador Sá.

No Brasil, não há dados oficiais sobre a quantidade de casos da doença, entretanto, levantamento da Associação Brasil Huntington (ABH) aponta que o número de pessoas portadoras do gene da doença é de 13 mil a 19 mil. A prevalência estimada da doença de Huntington é de 1/10.000, principalmente em pessoas caucasianas de ascendência europeia.

Uma das conquistas da comunidade no Brasil foi a aprovação da Lei 14.607/23 que institui a criação do Dia Nacional da Conscientização da Doença de Huntington, em 27 de setembro. Evento sobre o tema foi realizado no mês de setembro na Casa dos Raros, Centro de Atendimento Integral e Treinamento em Doenças Raras, em Porto Alegre (RS), em parceria com a Teva, empresa especializada na produção de genéricos e biofarmacêuticos.

Embora seja rara, por ser hereditária, a doença frequentemente afeta várias pessoas de uma mesma família. Ela tem um padrão de herança “autossômico dominante”. Ou seja, um paciente com a doença tem 50% de chances de ter filhos com a mesma condição, explica o médico neurologista Gustavo Franklin, professor e pesquisador da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).

Doutor em Medicina Interna e Ciências da Saúde, ele detalha que a chance de uma pessoa ter a doença sem histórico familiar representa entre 8% a 10% dos casos. Isso acontece quando a mutação se inicia na própria pessoa, que “começa” a doença na família.

Ele explica que os primeiros sinais motores da DH podem parecer um tique e que não há medicamento capaz de interromper a progressão da doença. “Mas a gente é capaz de mudar o impacto no paciente e na família”, frisa Franklin. Segundo o pesquisador, “todos os pacientes devem ter um tratamento multidisciplinar que envolva o suporte familiar, suporte fisioterápico, fonaudiológico e psicológico”.

O único tratamento específico para a doença de Huntington são os medicamentos que tratam os distúrbios de movimento (coreia). O neurologista explica que eles agem inibindo uma molécula (Vmat2). Dos três utilizados no mundo, apenas um está disponível no Brasil.

Apesar de não ser possível protelar o início dos sintomas com medicação, “existem circunstâncias que protegem em algum grau o início do surgimento da doença”. Não fumar, não se expor a substâncias danosas, praticar atividade física aeróbica, ter uma alimentação saudável, controlar ou não ter diabetes, hipertensão e obesidade são alguns fatores protetores de todas as doenças degenerativas, incluindo as genéticas.

Gustavo Franklin explica que é possível fazer aconselhamento genético para que pacientes com a doença tenham filhos sem risco de ter Huntington. “Na inseminação artificial, é possível saber qual embrião não tem a doença e implantar somente os que não têm a doença”.

O POVO esteve no evento a convite da organização.

  • Saiba mais: Casa dos Raros 

Iniciativa inédita na América Latina, o Centro de Atendimento Integral e Treinamento em Doenças Raras surgiu com a proposta de estabelecer uma rede interligada de atendimento integral às pessoas com doenças raras. Um dos objetivos é diminuir o tempo de diagnóstico Existem cerca de 7 mil doenças raras catalogadas. No Brasil, cerca de 12 milhões de pessoas têm uma doença rara. 

Tatiana Henrique é coordenadora da Associação Brasil Huntington (ABH)
Tatiana Henrique é coordenadora da Associação Brasil Huntington (ABH)

Uma doença que afeta toda a família

Falta de informação, estigma, preconceito. Essa é a realidade de grande parte das famílias com membros portadores do gene da doença de Huntington. A psicóloga Tatiana Henrique, 30, cresceu em Feira Grandes, Alagoas, segunda região com maior incidência da doença no País, onde pacientes com a doença são pejorativamente chamados de "nervosos, nervosentos".

Ela conviveu com pai e tios com a doença. Casos de surtos, compulsões e ideação suicida. Os pacientes com DH apresentam de 4% a 8% de maior chance de cometer suicídio, quando comparado à população geral.

Não havia diagnóstico correto da doença. Tatiana ouviu falar da doença pela primeira vez ao assistir um episódio da série americana "Dr. House". Posteriormente, ela descobriu que os familiares por parte de pai eram portadores do gene de Huntington.

Hoje, ela é coordenadora da Associação Brasil Huntington (ABH) e alerta para as dificuldades vividas pelos cuidadores, que suportam sobrecarga física e psicológica. "As famílias vivem o ápice do estresse, do sofrimento, do desamparo", compartilha. Com a progressão da doença, os pacientes precisam parar de trabalhar e precisam de muitos cuidados. Pelo caráter hereditário, vários familiares têm a doença. O que agrava a situação familiar. 

Além da falta de acesso sobre a doença, inclusive entre os profissionais de saúde, as dificuldades do paciente e da família envolvem a dificuldade do diagnóstico, visto que o exame é de alto custo e não é disponível no Sistema Único de Saúde (SUS). Também há ausência de protocolo clínico e indicação de acompanhamentos multidisciplinares, que poderiam proporcionar uma melhor qualidade de vida.

O diagnóstico precoce, ou seja, realizar testes antes do aparecimento dos primeiros sintomas, não é recomendado por muitos profissionais em casos suspeitos de DH, visto que não há medicamentos que alterem o curso natural da doença, para além do impacto emocional que um diagnóstico positivo pode causar.

 

Maior "cluster" da doença no Brasil: o caso do Ceará

O neurologista Luis Edmundo saiu de Fortaleza para morar em Sobral, município localizado na região norte do Ceará, em 2008. Ele conta que, logo após a chegada, percebeu uma "quantidade inesperada de pessoas com sintomas sugestivos de DH" vinda de um pequeno município próximo a Sobral, Senador Sá, mais precisamente de um distrito chamado Salão.

O médico, que é professor assistente de Neurologia na Faculdade de Medicina da Uninta, em Sobral, foi em busca dos possíveis casos da doença rara. "Comentei com um familiar desses pacientes que gostaria de ir conhecer a realidade do local", lembra. Foi quando o médico iniciou um projeto de pesquisa para determinar indicadores epidemiológicos da DH na região. Lá, encontra-se o maior cluster (aglomerado) da doença no Brasil.

Quinze anos após o início do projeto, a equipe de Luis Edmundo já diagnosticou em torno de 65 pacientes em diferentes aglomerados, como Senador Sá, Serra da Ibiapaba, Cruz, Varjota, Ipu, Pires Ferreira.

"Acredita-se que fatores como a consanguinidade, o isolamento geográfico e fatores culturais contribuem com o surgimento de aglomerados populacionais de doenças de caráter hereditário", explica sobre a alta incidência na região.

O distrito de Salão é conhecido como a "cidade dos primos". De alguma forma, "todos os pacientes guardam algum grau de consanguinidade", afirma o neurologista. Segundo ele, já há o diagnóstico de aproximadamente 30 pessoas na localidade.

O médico avalia que devem haver mais diagnósticos nos próximos anos. Isso porque os principais sintomas da doença iniciam em torno da terceira década de vida, idade em que as pessoas já têm filhos, e a doença é transmitida para metade da prole (probabilidade de 50%).

O professor é o fundador do Grupo de Estudos em Doenças Neurogenéticas de Sobral e contribui com o Registro Brasileiro de Doenças Neurológicas (Redone-BR), um registro das doenças neurológicas mais prevalentes, negligenciadas ou raras.

Ele destaca que o tratamento da DH pressupõe uma equipe multidisciplinar com médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterautas, entre outros profissionais da saúde. "Uma estrutura que não está disponível fora dos grandes centros de saúde, salvo exceções. O tratamento medicamentoso disponível atua como sintomático e paliativo dos sintomas sofridos pelos pacientes", acrescenta.

Luis Edmundo diz que a maneira como as pessoas reagem ao diagnóstico é muito variada. "Quando um paciente recebe o diagnóstico num estágio mais avançado da doença, a compreensão de suas consequências está muito prejudicada. Algumas vezes, a motivação de buscar o diagnóstico é a obtenção de um laudo para requerer um benefício junto ao INSS. Nos casos em que o paciente é beneficiado, a reação é diferente. Ainda assim, a compreensão da doença e suas consequências também está prejudicada pelo baixo nível educacional", compartilha.

No distrito de Salão, a DH é conhecida como "bole", uma palavra relacionada ao verbo "bulir", que significa mexer. Termo popular faz referência ao principal sintoma motor, os movimentos involuntários. O aglomerado da doença no município foi tema de documentário produzido em parceria pelos cursos de Jornalismo e Medicina da Uninta e a Associação Brasil Huntington (SBH).

 

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