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Metamorfa e biodiversa, essa é a verdadeira Caatinga
Ciência e Saúde

Metamorfa e biodiversa, essa é a verdadeira Caatinga

Ela é o semiárido mais biodiverso do mundo e o único bioma endêmico do Brasil, mas ainda é marcada pelo preconceito e pelo imaginário de desolação e pobreza. Conheça a Caatinga de verdade e os ensinamentos que essa floresta metamorfa tem a oferecer
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Onça-parda fotografada na Associação Caatinga, na Serra das Almas (Foto: Armadilha Fotográfica / Associação Caatinga
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Foto: Armadilha Fotográfica / Associação Caatinga Onça-parda fotografada na Associação Caatinga, na Serra das Almas

 

Quando falam sobre ela, fazem parecer que morreu. Equivocam-se ao ver galhos despidos e respirar o ar seco, confundem-se por perderem de vista os grandes e os pequenos animais. Convencem-se de que a vida daqui fugiu ou desapareceu, voltando sazonalmente apenas quando cai a primeira gota do céu.

Euclides da Cunha, em Os Sertões, disse que “ao sobrevir das chuvas, a terra transfigura-se em mutações fantásticas, contrastando com a desolação anterior”. É meia verdade: o período seco, para a Caatinga, não simboliza necessariamente desolação. É parte da identidade de um bioma unicamente brasileiro e é belo por definição.

Porque a Caatinga é uma floresta metamorfa de 850 mil km², adaptada à abundância e à escassez sem medo. Ela é singular e biodiversa, e talvez você ainda não saiba disso. Pois se achegue para descobrir porque a Caatinga é, antes de tudo, uma beldade.

No período seco, ela admira os focos verdes e coloridos que árvores como a carnaúba (Copernicia prunifera), o juazeiro (Ziziphus joazeiro) e os ipês lançam na paisagem. No meio de uma mata nua, descansando enquanto arruma-se a chuva, essas plantas aprenderam a florir e a atestar que a Caatinga é uma floresta, sim, senhor.

A Caatinga é o semiárido mais biodiverso do mundo e é um bioma endêmico do Brasil. Ela cobre 11% da extensão territorial do País, presente em todos os estados do Nordeste (70% da região) e o norte de Minas Gerais.

Basta admirar o juazeiro, ponto cardeal sertanejo. Na vastidão branca, a copa expande-se em sombra e frescor, abrigando o gado e quem mais quiser. Os ipês aguardam justamente o mês de setembro para abrir em múltiplas cores e tonalizar a vista do segundo semestre. Depois, quando vem a quadra chuvosa, a catingueira (Cenostigma pyramidale) “fulora” amarela e dá de comer aos animais — foi assim que disse Dominguinhos.

Em geral, florestas são ambientes com concentração de árvores cujas copas criam um “teto verde”. De acordo com Cássia, a floresta também pode ser definida como um ecossistema em que há harmonia entre os seres viventes. “A Caatinga sofreu uma pressão muito forte no processo de ocupação”, explica a agrônoma, o que retirou dela uma boa parte das árvores mais frondosas. No entanto, em áreas preservadas como a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Serra das Almas, é possível atestar o telhado verde que a definição de dicionário refere-se.

Isso não significa que a Caatinga deixa de ser floresta ao desprender-se das folhas como estratégia para economizar água. “É uma mata branca, todas as plantas estão vivas e guardando energia”, reforça Cássia. Ocorre que os livros escolares e as produções midiáticas imbuíram o imaginário popular de florestas obrigatoriamente verdes, escanteando as diversas estratégias de resiliência e adaptação à seca.

A carnaúba é uma dessas árvores grandes e bonitas que desenvolveram a característica de criar cera nas folhas para perder menos água no segundo semestre. Símbolo do Ceará, ela é conhecida como “árvore da vida” e está no cotidiano de todo o mundo: chips de celular, chocolates M&Ms e cosméticos como o batons são alguns dos produtos que só existem graças à cera da carnaúba.

Foi para preservar a carnaúba que a Associação Caatinga criou a RPPN Serra das Almas. Aos poucos, a reserva natural transformou-se em um santuário da real imagem da Caatinga — influenciando também a vida das comunidades do entorno.

 

Orgulho de ser do sertão

Uma dessas comunidades é a Santa Luzia, em Crateús (CE), onde vive Núbia Cardoso, 56, artesã especializada em folhas da carnaúba e agricultora. Como muitos sertanejos da mesma faixa etária, ela começou no roçado ainda criança, quando tinha 7 anos, para ajudar o pai Joaquim Cardoso Guarim a criar os dez irmãos.

"Meu pai criou a gente tudo na agricultura. Não tinha ajuda de governo, só os braços dele", conta, enquanto relembra de seu Joaquim voltando após uma semana fora com sacos de milho, feijão e farinha. O retorno sempre era por volta da meia noite, quando de mansinho acordava as crianças para merendar rapadura na cuia com farinha — a "fartança" da casa.

Apesar das dificuldades, Núbia pegou um apreço danado pelo roçado. Não fossem os problemas de saúde relacionados a um Acidente Vascular Cerebral (AVC), estaria até agora arando o chão e colhendo o próprio milho e feijão, seguindo o que aprendeu com o pai. "A minha melhor memória é do meu pai, já com boa idade e ainda era um homem forte, indo pra roça quando começava a chover. Ele plantava, limpava, ia colher… Acho que é saudade." Seu Joaquim faleceu há três anos, aos 90 anos de idade.

Para ela, a Caatinga e o sertão nunca foram sinônimo de pobreza, mesmo que tenha aprendido a enxergar as belezas com uma nova lente já mais adulta. Isso porque, na juventude, via-se água, árvores e animais, mas também via-se "muita desmata". "Depois que a gente conheceu a reserva, mudou a vida da comunidade, de todas ao redor", afirma. "Eu digo que tenho, assim, muito amor. Eu amo uma coisa diferente. Quando eu tô no meio do mato, mulher, é muito gostoso… A gente vê que a vida da gente tá ali."

O carinho é tanto que, para Núbia, é praticamente impossível dizer o que mais gosta do bioma. Ela lembra dos preás passeando pelo quintal da casa, dos lourinhos cantando e balançando as folhas. Pensa nas plantas e na natureza como "a coisa mais linda".

A minha cultura vem da agricultura, disse o mestre Dodô, do Crato (CE), à jornalista Pâmela Queiroz, criadora da Caatingueira, um podcast de ciência, saberes tradicionais e mulheres apoiado pelo Instituto Serrapilheira. A afirmação do mestre de reisado reforça o quão interligados estão os sertanejos à terra.

Ocupação histórica gera vulnerabilidade

Mesmo forte, há batalhas intensas demais para se lutar sozinha. Por mais adaptada que seja, a Caatinga não tem tempo para enfrentar o avanço da agropecuária, da urbanização e das mudanças climáticas.

O desmatamento citado por Núbia Cardoso é componente histórico da ocupação do semiárido brasileiro. Desde 1987, a Caatinga já perdeu por desmatamento 2,13 milhões de hectares de vegetação primária, ou seja, a mata "original" com maior biodiversidade, e 49,89 mil hectares de vegetação secundária (a que surge naturalmente após a supressão da primária). Os dados são do MapBiomas.

Desde a colonização, a Caatinga foi devastada para abrigar monoculturas de algodão e de cana de açúcar, extração de madeira e a pecuária. Atualmente, é justamente a expansão de grandes empreendimentos como usinas solares e eólicas, ao lado da especulação imobiliária e loteamentos, que têm pressionado o bioma e as comunidades tradicionais.

Ao todo, 80% dos ecossistemas originais da Caatinga foram alterados por processos humanos. Segundo o Relatório Anual de Desmatamento (RAD) do MapBiomas, o desmatamento na Caatinga só cresce. Em 2022, 11% da área desmatada no Brasil era do bioma, valor que subiu para 22% em 2023 — um aumento de 43,3% em comparação a 2022.

"Houve registro de pelo menos um evento de desmatamento em 1.047 (87%) dos 1.209 municípios que compõem o bioma Caatinga em 2023. Mais de 4.302 hectares foram desmatados por empreendimentos de energia renováveis (eólica e solar)", descreve a organização. O Ceará é o segundo estado mais desmatado, atrás apenas da Bahia.

Períodos com reclusão

"Uma vez ouvi isso da poeta Raquel Cariri e me impactou muito: o período seco da Caatinga é um momento de reclusão que a gente como humano precisa às vezes", reflete a jornalista Pâmela Queiroz. "É um convite ao acolhimento, à observação, ao silêncio. Você só consegue novas estratégias quando você silencia e observa. É quase uma consciência que essa floresta tem do que ela tá passando. É de uma inteligência encantadora."

Mais do que nunca, é hora de ver e entender a Caatinga pelo que ela realmente é, não pelos preconceitos construídos por séculos. "Acho que o que eu mais gosto da Caatinga é a diversidade de adaptações das plantas do sertão. Elas rebrotam muito rápido, junto com os insetos e pequenos animais… Esse revivescer muito rápido, essa capacidade… O metabolismo da vida (no sertão) é muito mais rápido", admira-se a professora Francisca.

"Todo clima árido e semiárido é vulnerável às pressões antropogênicas (causadas por humanos), porque são recursos limitantes", explica Francisca Soares de Araújo, doutora em Biologia Vegetal e professora visitante sênior na Universidade de Montpellier, na França.

No semiárido brasileiro, as áreas de maior pressão são justamente onde surgiram os primeiros vilarejos e por onde passavam as rotas de expansão pecuária. "O Ceará é o estado mais seco do Nordeste, e quase todo ele está no clima semiárido", aponta Francisca. "É por isso que dizem que no sertão as pedras crescem."

Mesmo que o semiárido esteja mais vulnerável à desertificação, ela só ocorre por causa da superexploração do solo e do desmatamento.

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