A bandeira do estado do Ceará é formada por quatro quadrantes. Cada um representa um elemento. O primeiro é formado por um Sol e pelo Farol do Mucuripe, simbolizam o fogo. O segundo, por uma serra e um pássaro, representa o ar. O terceiro, o mar e uma jangada, retrata a água. E, o quarto, o Sertão e a carnaúba, simbolizam a terra.
Caso você não saiba, a carnaúba é uma árvore. “Os três estados com maior ocorrência (do vegetal) são o Ceará, Rio Grande do Norte e Piaui, mas principalmente o Ceará. Ela tem uma importância cultural muito forte. Ela está na nossa bandeira e nas nossas paisagens”, destaca Rafael Costa, professor do Departamento de Biologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
A planta é comum na Caatinga, bioma que está presente em mais de 90% do território do Ceará e tem data nacional específica, o 28 de abril. A Caatinga é exclusiva do Brasil e cobre quase 10% do território nacional.
A carnaúba é considerada sagrada para os Tapebas, etnia indígena concentrada em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza. Eles a chamam de "Árvore da Vida". "(A carnaúba) tem uma simbologia ancestral para nós. Tem toda uma cosmologia da natureza com a mãe Tamain, a mãe terra. Então, a gente tem uma grande conexão com ela", ressalta Cassimiro Tapeba, liderança da etnia.
"A árvore nos dá moradia, vestimenta, espiritualidade, artesanatos, uma maneira de vida melhor. Tem toda uma simbologia por conta disso", adiciona.
Com o nome científico de Copernicia prunifera, a carnaúba é uma palmeira endêmica do Brasil. Ou seja, só existe por aqui. Ela é bem comum de ser encontrada pelo interior da Caatinga e pelo litoral que margeia o bioma, como no Piaui e no Ceará.
De acordo com Marcelo Freire Moro, professor do curso de Ciências Ambientais da UFC, a palmeira pode ser encontrada em um ambiente específico dentro da Caatinga: as áreas sazonalmente alagáveis. ”São ambientes que ficam alagados na estação chuvosa e depois secam, como margens de rios e lagoas (nas matas ciliares) e também em brejos”.
A árvore é matéria-prima da cera de carnaúba (bem óbvio pelo nome), um produto de grande relevância para a economia do Estado e que tem inúmeras aplicações.
“É capaz que eu ou você já tenha utilizado algum produto a base da cera, como por exemplo: as cápsulas de comprimido, as coberturas de chocolates, como a dos M&Ms, que são brilhosas, em peças de computadores, cosméticos, além dos produtos de polimentos”, explica Samuel Portela, biólogo da Associação Caatinga (AC).
“Nas parcerias com os Estados Unidos, o Ceará traz muito à mesa (...) A razão que os M&Ms derretem na sua boca, não na sua mão é porque no Nordeste do Brasil há carnaúba”, exemplifica May Baptista, cônsul-geral no Consulado Geral dos Estados Unidos no Recife (PE). Os EUA são o terceiro maior mercado importador da cera de carnaúba do Ceará, tendo comprado mais de US$ 10 milhões no ano passado.
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O biólogo Samuel Portela ainda destaca que a cadeia produtiva do material acontece, principalmente, no segundo semestre do ano, "durante o período de seca, quando não há a produção de alimentos: milho, feijão etc". "Aí, no primeiro período, (os alimentos) geram renda. E, no segundo, quando há uma escassez maior, tem a cadeia produtiva da carnaúba funcionando, que é quando a cera é extraída”.
A cera da carnaúba, de acordo com o biólogo, é uma camada de proteção presente nas folhas da árvore. Ela evita a perda de água para o ambiente. Por conta do clima, a cera fica ainda mais grossa no segundo semestre do ano. “Quanto mais quente e seco, mais espessa é essa camada de cera”.
Rafael Costa ainda destaca que, além da importância econômica, a árvore tem um protagonismo ecológico dentro da Caatinga. “Ela, por exemplo, tem um papel importante na manutenção da fauna. Tem uma série de espécies de aves e morcegos que se alimentam dos frutos dela e acabam ajudando a dispersar esses frutos e semear a carnaúba”.
“Como ela está muito associada a esses ambientes próximos aos rios, ela tem um papel importante na estabilização dos sedimentos que são transportados e depositados pelos rios e, como ela representa uma quantidade grande de biomassa nesses ecossistemas, também tem um papel importante na reciclagem de elementos químicos”, continua.
As exportações da cera da carnaúba tiveram um crescimento de 14,8% em 2023, em relação a 2022, de acordo com dados Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), coletados no dia 11 de janeiro de 2024.
Conforme Sérgio Baima, engenheiro agrônomo da Secretaria do Desenvolvimento Econômico do Estado do Ceará (SDE-CE), a cera de carnaúba é o quarto produto do agronegócio mais exportado pelo Ceará. Com relação a todos os produtos, o material fica na 11º posição.
“A cera é importante, porque é um produto de exportação. Além disso, também é importante para os pequenos produtores, porque tudo se aproveita na carnaúba. As folhas são usadas para várias coisas, principalmente para a cobertura de habitações, artesanato, etc”, detalha.
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Baima acrescenta: “Em termos industriais, a cera é utilizada na fabricação de cosméticos, plástico, papel carbono, tinta, chips de computador, lubrificantes, impermeabilizantes, vernizes e até produtos farmaceuticos”, continua.
Cabe destacar que, segundo Samuel Portela, a exploração da cera não cria um desequilíbrio ecológico no bioma: a árvore não precisa ser derrubada para retirar o material. “A exploração da árvore é realizada de forma ‘sustentável’. Apenas as palhas (são retiradas). O olho da carnaúba, que é a parte responsável pelo crescimento da planta, não é retirado”.
A caatinga é o único bioma exclusivamente brasileiro. Todos os demais englobam países vizinhos, como é o caso da Mata Atlântica, dos Pampas, Amazônia etc. “O bioma ocupa mais de 800 mil quilômetros quadrados (km²). Isso representa aproximadamente 10% da cobertura do território braileiro, além de abrigar uma grande população de mais de 20 milhões de habitantes”, explica Samuel Portela, biólogo da Associação Caatinga.
A Caatinga compreende os estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Piaui, Sergipe e o norte de Minas Gerais. No Ceará, o bioma ocupa cerca de 92% do território, conforme o biólogo
“Se comparado a outras regiões semiáridas do mundo, a Caatinga é o bioma mais biodiverso. É o que mais possui espécies de fauna e flora”, adiciona.
Apesar da biodiversidade, por muito tempo a Caatinga foi retratada como um ambiente pobre e com pouca diversidade, o que não é verdade. O professor Marcelo Freire Moro, do curso de Ciências Ambientais da Universidade Federal do Ceará (UFC), acredita que isso aconteceu porque, no passado, o bioma era pouco estudado cientificamente.
“Além disso, o preconceito que parte da sociedade brasileira tinha com as populações humanas que migravam para outras regiões do Brasil, durante os períodos de seca, também foi direcionada para o ecossistema da caatinga”, pontua.
“A grande Rachel de Queiroz (1910–2003) mostrou o sofrimento e o preconceito contra as populações humanas que eram expulsas de seus territórios durante os períodos de seca, mas vale destacar que o flagelo humano era em grande medida derivado de uma estrutura social excludente e um poder público omisso”, continua. A escritora cearense é autora de "O Quinze", obra seminal que retrata a miséria no Ceará durante a seca de 1915.
O professor Marcelo Freire Moro ainda destaca que a seca não é sinônimo de pobreza. Existem áreas áridas e semiáridas no planeta que têm elevado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), como Austrália, Espanha, parte dos Estados Unidos, etc.
“O problema maior é que no semiárido brasileiro tínhamos, durante os períodos de seca, uma estrutura social e uma falta de planejamento governamental que deixava totalmente desassistidas as populações mais carentes”.
Ele acredita que o preconceito social contra retirantes — migrantes nordestinos que se mudavam para outras partes do país — se estendeu ao bioma.
“(A Caatinga) era vista como uma área seca e sem importância. Só com os últimos 30 anos de pesquisa sobre a biodiversidade da Caatinga é que temos visto como ela é rica e diversa, com centenas de espécies de peixes, mamíferos, aves e mais de três mil espécies nativas de plantas”.