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Canto e liberdade: o poder curativo da música
Ciência e Saúde

Canto e liberdade: o poder curativo da música

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Ela aprendeu a cantar com um passarinho e deu voz à liberdade de viver fora de qualquer gaiola. Durante 38 anos, marcou as férias para o período do Carnaval a fim de conciliar duas grandes vocações. Nos corredores dos hospitais psiquiátricos, era a enfermeira Yvonne; na Marquês de Sapucaí, era dona Ivone Lara (1922-2018), a primeira-dama do samba.

Essa é uma história pouco conhecida, mas foi somente aos 56 anos, depois de se aposentar do serviço de doenças mentais, em 1978, que dona Ivone Lara pôde se dedicar à carreira artística e dar vazão ao amor pela música que veio de berço como um "sonho meu".

Antes de emprestar seu talento à cultura brasileira, ser melodista e compositora ao lado dos maiores letristas do Brasil e de se destacar em um ambiente até então masculino como as rodas de samba, a rainha do Império Serrano também foi pioneira ao integrar as equipes dos mais respeitados médicos do País e dedicou quase quatro décadas à carreira na saúde — com papel fundamental na luta antimanicomial e na reforma psiquiátrica brasileiras ao lado da psiquiatra Nise da Silveira.

Além da paixão e dedicação ao samba, foi uma das primeiras mulheres negras a segurar o diploma de assistente social no País, num período em que a profissão ainda nem havia sido regulamentada.

Não satisfeita com as duas formações, ainda especializou-se em uma das turmas do curso elementar de ministradas por Nise, que também era sua supervisora. Como um passarinho que voa pacientemente e colhe galhos para construir o seu ninho, Ivone se deslocava entre o Rio de Janeiro e municípios de estados vizinhos para "buscar quem mora longe", parentes dessas pessoas cujos laços foram partidos. Devolver minimamente o convívio social era uma tentativa de resgatar o senso de humanidade delas.

Com a sensibilidade e o conhecimento que lhe eram natos, a enfermeira, assistente social e terapeuta ocupacional ajudou a construir uma visão diferente da maioria dos diagnósticos médicos — uma abordagem completamente nova de humanização que revolucionou o tratamento da saúde mental.

Tal enredo remete a uma época em que não se via profissionais negros na área da saúde, a musicoterapia era um processo terapêutico impensável e pacientes com transtornos mentais eram isolados da sociedade e abandonados pela família.

E se a sambista Ivone embalou histórias e transformou vidas com a voz quando artista, a melodia e eloquência da enfermeira Yvonne também ajudaram a levar a terapia musical para quem era acolhido por ela nas instituições pelas quais passou: da Casa das Palmeiras e do Instituto de Psiquiatria do Engenho de Dentro ao Hospital Psiquiátrico Pedro II (hoje Hospital Nise da Silveira), onde era conhecida por percorrer as enfermarias e os pavilhões em busca de histórias, referências e laços familiares dos pacientes.

A busca ativa não parava por aí: através das amizades que fazia com facilidade, conseguiu patrocinar instrumentos musicais e criou uma oficina de música onde passou a apoiar festas e eventos de socialização entre enfermos, familiares e funcionários — uma experiência que, anos mais tarde, daria origem ao bloco de carnaval carioca Loucura Suburbana.

"Tinha o Ribamar, que era catatônico. Vivia lá, esquecido pela família, quase sem falar. Um dia, estávamos ouvindo uma outra doente tocar piano e comecei a cantar. Ele prestou atenção e ficou admirando, até que me disse que era músico", descreveu em entrevista.

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