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De Dolly à atualidade, por que ainda clonamos animais
Ciência e Saúde

De Dolly à atualidade, por que ainda clonamos animais

A clonagem deixou de ser um experimento distante para se tornar parte do dia a dia de muitos laboratórios no Brasil e no mundo. Por trás da técnica, estão pesquisas que buscam curar doenças raras, preservar espécies ameaçadas e até reduzir desigualdades no acesso a medicamentos. Mas, junto com os avanços, vem também dilemas: até onde é aceitável modificar a vida?
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VEADO-MATEIRO faz parte de projeto de pesquisa da Uece (Foto: Arquivo pessoal )
Foto: Arquivo pessoal VEADO-MATEIRO faz parte de projeto de pesquisa da Uece
Sua pelagem era marrom clara, com faixas mais escuras ao redor dos olhos e ao longo do dorso que reluzia sob a luz artificial do estábulo. À primeira vista, era só mais uma cabra recém-nascida. Sua expressão calma não condizia com o significado que esse nascimento tinha.

Naquele cercado, com olhares atentos, ela representava um feito científico inédito: após três anos de pesquisa na Universidade de Fortaleza (Unifor), Gluca se tornava o primeiro clone de cabra da América Latina.

Gluca foi o primeiro clone geneticamente modificado da América Latina. Ela faleceu em 2023, após nove anos sendo um dos focos da pesquisa de clonagem da Unifor.

Ela não é apenas um animal replicado, mas o ponto de partida de uma pesquisa pioneira na produção de biofármacos a partir do leite, com o objetivo de revolucionar o tratamento de doenças raras e até mesmo o câncer.

A clonagem altera o código genético do animal para incluir um transgênico e produzir esses tratamentos, já que os biofármacos são proteínas complexas que não podem ser produzidas em laboratórios. Eles precisam de organismos vivos para sua produção.

No caso de Gluca, a modificação feita no DNA permite que o leite do caprino sirva como veículo de produção de proteínas terapêuticas contra as doenças.

A espera foi longa, de 2011 até o dia 27 de março de 2014. O nascimento de Gluca aconteceu por meio da iniciativa dos pesquisadores Marcelo Bertolini, Luciana Bertolini e da equipe do Núcleo de Biologia Experimental (Nubex), da Unifor.

Eles são animais comuns: nascem, crescem, às vezes acasalam, enfrentam a velhice e encerram o ciclo natural. Gluca passou por essa trajetória.

Em 2020, ela se juntou à Dolly, o primeiro animal clonado do mundo. A cabrinha faleceu, mas antes deu início a um rebanho repleto de clones e outros filhotes. Alguns mais diferentes, com cores e tamanhos diversos. Já outros, apenas se diferem por uma marquinha no focinho.

Hoje, existem mais de 70 animais sob a responsabilidade da Nubex, dos quais 15 são clones. “Tudo está voltado em torno dessa pesquisa relacionada à produção de biofármacos no leite do caprino geneticamente modificado”, explica Leonardo Tondello, pesquisador do projeto e professor da Unifor. 

A proposta faz parte de uma linha de investigação que busca produzir medicamentos que possuem alto custo a partir de animais geneticamente modificados.

O objetivo é reduzir os gastos com a importação desses fármacos e ampliar o acesso da população a tratamentos mais eficazes.

Com os custos tão altos, o Sistema Único de Saúde (SUS) enfrenta dificuldades para custear os tratamentos. Na prática, apenas pacientes com alto poder aquisitivo conseguem arcar com eles de forma individual.

Mas enquanto laboratórios como o Nubex apostam na clonagem como ferramenta para a produção de biofármacos, esse mesmo processo já vem sendo utilizado, em outra frente, como estratégia de mercado.

  

 

Clonagem comercial: genética sob encomenda

Existem várias técnicas usadas para produzir animais geneticamente modificados. Entre elas, duas se destacam: a injeção de pronúcleo e a clonagem. É nessa segunda que se insere um processo que, embora complexo, já faz parte da rotina de muitos laboratórios ao redor do mundo.

Apesar de envolver técnicas sofisticadas e ainda em constante aperfeiçoamento, a clonagem já é utilizada comercialmente no Brasil e em diversos países.

Distante das aplicações medicinais, a clonagem comercial ocupa um espaço expressivo no mercado de animais de elite. Clones de cavalos atletas mais rápidos e com físico definido, bovinos de alto padrão que valem milhões, ovinos e caprinos com melhor qualidade.

Retira uma célula do animal que se deseja clonar. Ela então é fundida a um óvulo, que funciona como um motor biológico, iniciando o desenvolvimento embrionário. O embrião é implantado no útero de uma fêmea que atua como barriga de aluguel. A partir daí tem início uma gestação comum, que ao final dará origem a um clone.

Na ponta do lápis, os custos envolvidos muitas vezes justificam a escolha. Clonar um animal pode sair mais vantajoso do que adquirir um exemplar natural, já que o clone, uma vez registrado, passa a ter existência própria e valor de mercado, podendo inclusive ter sua genética comercializada.

De acordo com Leonardo, embora o processo de clonagem ainda tenha um custo elevado, ele se torna relativamente acessível diante do valor dos animais originais. "Você tem no Brasil hoje uma vaca que vale R$ 24 milhões. Um clone custa cerca de R$ 100 mil".

Aplicações de estudos apresentam paradoxos éticos

No cenário global, as pesquisas envolvendo clonagem avançam em outra direção: a tentativa de trazer de volta espécies extintas. Recentemente, a empresa americana Colossal anunciou avanços no projeto de "reviver" o chamado lobo-terrível. Uma espécie marcada pelo seu grande porte e que se tornou símbolo da série americana Game of Thrones.

O principal foco, no entanto, é a ressurreição do mamute-lanoso. Mas não se trata apenas de trazer um animal extinto de volta à vida; o objetivo é criar um elefante adaptado ao frio. A ambição é que essa nova criatura possa, um dia, reassumir o papel ecológico que seus ancestrais desempenharam.

O professor de Medicina Veterinária da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Vicente Freitas, compartilha que, no caso da empresa Colossal, o maior retorno para sociedade seria provar que a clonagem pode ser usada para salvar da extinção as espécies que correm risco atualmente.

A Colossal também argumenta que trazer o mamute de volta ajudará a aumentar a resiliência de habitats às mudanças climáticas e a conservar elefantes modernos. Além disso, eles possuem o objetivo de criar uma espécie de parque Jurassic World, no sul do Canadá, onde seriam criados os mamutes clones obtidos. Apesar da iniciação desse plano com o lobo-terrível, a União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN) se pronunciou formalmente que os espécimes obtidos com aparência de lobo-terrível não se tratam da espécie original.

Por meio de sua comissão específica para canídeos, a IUCN disse que o feito "não contribui para a conservação" ou para restabelecimento de ecossistemas. Para Luciana Melo, professora e pesquisadora da Uece, o propósito desses projetos não é ecológico. Ela questiona: "Até que ponto essas pesquisas em engenharia genética visam realmente avanços em conservação?

Como a pesquisa pode ajudar na proteção de espécies ameaçadas

A Uece iniciou suas pesquisas com clonagem com um projeto voltado para a obtenção de caprinos transgênicos. A professora Luciana está envolvida e é a responsável técnica pelo Laboratório de Conservação de Cervídeos Neotropicais (Laccerne).

Assim como na Unifor, o objetivo era que esses animais produzissem uma proteína humana (hG-CSF) em seu leite, para ser usada na fabricação de medicamentos.

Essa proteína é utilizada no tratamento de doenças que causam queda de imunidade, como Aids e neoplasias. Apesar de conseguirem os animais transgênicos, embriões e algumas gestações, nunca foram capazes de obter animais clones vivos nesse contexto.

Agora o projeto iniciou a pesquisa de clonagem de cervídeos, com foco no veado-mateiro (Mazama gouazoubira). "Nossas pesquisas visam conservar o material genético que está, quase que inevitavelmente, sendo perdido", explica Luciana.

A esperança do Laccerne é que a técnica de clonagem possa ser utilizada futuramente em espécies que correm risco no momento. Paralelamente, o projeto Bancco Bioceres coleta e criopreserva células de cervídeos resgatados no Ceará, servindo como um biobanco para conservação do material genético. Essas células podem ser usadas para estudar a diversidade genética e potencialmente para clonagem de indivíduos que vieram a óbito.

Mas o processo enfrenta desafios específicos que a pesquisa busca superar. Como explica a professora, a clonagem interespecífica, feita entre espécies diferentes, é mais complexa do que a de animais domésticos, já que, na maioria dos casos, não há exemplares da espécie original sob cuidados humanos, como em criadouros ou em zoológicos.

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