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Conflito de gerações: quem decide
Ciência e Saúde

Conflito de gerações: quem decide

COVARDIA II
Edição Impressa
Tipo Análise Por
Ciência e Saúde/ Artigo 31082025 (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Ciência e Saúde/ Artigo 31082025

Um aspecto que requer atenção nas relações entre pais (os que exercem tais funções) e filhos relaciona-se às decisões que esses pais, supostos adultos, esperam de uma criança. Esperam porque demandam. É corriqueiro ouvir pais de crianças muito pequenas, na faixa de 2 a 3 anos, por exemplo, perguntarem o que essas crianças querem fazer, o que querem comer, onde querem ir, qual roupa desejam vestir; enfim, questões triviais do cotidiano da criança.

Tais questões poderiam ser simplesmente uma forma de iniciar uma conversa com a criança, mas não parece ser isso o que vem acontecendo. Pais têm transferido sistematicamente a carga de responsabilidade pela tomada de decisões aos ombros da criança, como se essa "soubesse" qual roupa ou alimento seria o mais adequado, ou qual destino toda a família deveria tomar.

Esse modo de proceder, com a transferência da tomada de decisões, pode deixar a criança em situação ainda mais "majestosa", fazendo um trocadilho com o que Freud constatou ao resumir as demandas da criança por atenção, "sua majestade, o bebê". Ou seja, um poder incompatível com a posição entre essas gerações. Talvez seja por isso que a criança seja tão imperativa ao exigir o celular ou outra tela (conforme abordei no artigo Covardia I), seja para comer em casa, ou para ficar quieta no restaurante, ao usar seu poder de majestade para conseguir o que quer.

A pergunta que precisa ser feita é: as crianças estão preparadas para se tornarem adultas, ou seja, elas podem arcar com o peso dessas decisões? O quanto de sua própria infância está sendo perdida? Isso, considerando o fato de ter que escolher, e quando essas escolhas fazem-na esquecer o mundo do brincar-aprender, para ser inserida a fórceps no mundo do adulto, um futuro adulterado (Lacan).

O outro lado da interrogação pode ser: por que adultos estão deixando de lado seu poder decisório em relação às crianças, e simplesmente passando para os pequenos tal poder? Ou melhor, por que adultos estão com dificuldade em se tornar adultos, aqui conforme alerta emitido por Lacan?

Ainda que pensássemos ser possível que o poder decisório das crianças estaria sendo tomado a partir de reflexões sobre qual a roupa mais adequada, qual a comida mais nutritiva, qual o local mais apropriado para ir, ou o que fazer num determinado momento, há algo ainda mais precioso que estamos transferindo: a dissimetria do discurso intergeracional - é preciso que o discurso entre pais e filhos seja dissimétrico -, pais e filhos não são uma fraternidade, a relação não é entre pares.

A transmissão discursiva é vertical, como se a Lei passasse de uma geração a outra, e isso não significa necessariamente implementar discursos autoritários. Antes disso, é preciso estabelecer com a criança um discurso onde a escuta seja respeitada, mas a orientação parte dos pais (sempre aqueles que exercem tais funções) e não o contrário. É lógico que a criança precisa ter todas as condições de falar o que a está incomodando, dizer quais as razões para não tomar banho, escovar os dentes ou não querer ir a determinado lugar, tampouco comer determinada comida, e por qual motivo ela exige a tela. Sim, o espaço da palavra precisa ser respeitado, o que não significa que as decisões finais fiquem sob sua responsabilidade. Ainda que muito possa ser ponderado nessa conversa, uma criança depende de um adulto para sobreviver, independente de quão precoce essa criança possa ser, independente da razoabilidade de seus argumentos, a decisão ainda assim precisa ser tomada por um adulto. É a segurança que lhe pode ser transmitida.

Esses argumentos podem parecer anacrônicos, fora de moda, fato é que crianças estão cada vez mais assumindo posturas decisórias, talvez por um excesso de zelo dos pais relacionado ao medo de perder o amor da criança, pois esses pais estão ausentes a maior parte do dia, isso pode ocasionar sentimento de culpa. Seria algo como se o recuo fosse uma garantia de amor. O problema é que pode ser o contrário, muitas vezes a criança precisa do limite e o provoca, este sim seria mais "garantidor".

 

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