No artigo anterior, teci breves comentários sobre a transferência decisória de adultos para crianças, como se essas pudessem arcar com um poder incompatível com sua estrutura psíquica. As relações entre pais (sempre os que exercem tais funções) e as crianças são complexas e delicadas, com vários processos distintos interagindo, como as condições sociais, por exemplo, tendo como resultado uma diversidade de situações, que refletem os diferentes arranjos relacionados à organização familiar.
A exposição e exploração de crianças como mercadoria não é algo novo no processo civilizatório, já a concepção de criança, propriamente dita, sim. Nem sempre a criança foi entendida como um ser diferente do adulto. Há inúmeros exemplos na história recente de crianças sendo vendidas pelos pais para se prostituírem, seja em alguns países da Ásia e mesmo no Brasil, conforme denúncias de acertos de familiares com caminhoneiros, a título de exemplo.
Alguns programas infantis veiculados pela televisão pareciam cortejar adultos, diante da evidente erotização dos corpos de crianças; concursos de beleza infantil para as meninas seguem o mesmo caminho, crianças são vestidas e maquiadas como mulheres sensuais. Podemos perguntar: quais olhares são esperados do outro lado da tela? Isso atualiza a questão, cuja incidência de casos parece ter efeito exponencial a partir da Internet, uma vez que é possível buscar o que se procura, com apenas um clique.
Vídeos com a exposição e exploração de crianças na Internet, conforme denúncia do influenciador conhecido por Felca, realizados pelos próprios pais ou responsáveis obedece a apenas uma lógica, ou melhor, um fundamento: a do lucro a qualquer custo. As redes sociais, as grandes plataformas lucram com os dados de todos, daí a denominação de big data, empresas detentoras de informações massivas, às quais expõem gostos e preferências de qualquer um, inclusive de pedófilos.
O colchão que resguarda esse lucro a qualquer custo é o discurso ultra individualista inoculado pelo neoliberalismo, que defende uma menor presença do Estado, implicando menor alocação de recursos nas áreas sociais, na defesa de que cada um se vire, numa linguagem bem rasteira. O fracasso seria apenas uma falha individual, e não sistêmica.
Nesse caso, sequer importa se não há creches, escolas, saneamento, postos de saúde, emprego, racismo estrutural, violência do crime organizado, condições de transporte, enfim, a lista é bem grande e reflete o quadro histórico de desigualdades sociais. Esse discurso tenta destruir todas as formas de vida em comunidade, como se cada um pudesse se servir do outro como mercadoria, talvez o impacto maior seja quando nos defrontamos com a defesa desses argumentos em ambiente doméstico, entre pais e filhos.
Notar que o discurso reproduzido pelas crianças, conforme vídeo do influenciador digital, Felca, o qual escancarou o problema da erotização das crianças, com a exposição e exploração de seus corpos, põe em evidência o individualismo, o egoísmo, o materialismo, a ausência de empatia, como se essas crianças fossem autômatos do empreendedorismo, algumas até dando conselhos como se fossem coachs, algo um tanto patético.
Crianças repudiando a escola e os conhecimentos que ali podem ser adquiridos, como se a única coisa que precisassem na vida fosse o dinheiro. O fracasso econômico-financeiro torna-se uma questão individual, algo de extrema covardia que adultos colocaram para as crianças repetirem, ou seja, retirando as condições sociais preexistentes, retirando a inequívoca condição de desigualdades sociais. Qual a condição futura para que essas crianças e todas as que sejam influenciadas, através de discursos nada infantis, possam desenvolver algum tipo de pensamento crítico em relação às condições materiais de sobrevivência?
É difícil apontar a extensão do problema, mas a regulamentação é emergencial, de modo a responsabilizar as plataformas em relação ao conteúdo veiculado nas redes. Para isso, seria necessário um conjunto de medidas protetivas em relação à exposição de crianças e adolescentes, como: a limitação de idade mínima para ter acesso a um perfil social; o controle biométrico de acesso a determinados conteúdos - já existente na Inglaterra, por exemplo; e, sobretudo, a proibição da monetização de vídeos com imagens de crianças e adolescentes.
Isso seria o mínimo para tentar barrar abusos que vêm sendo cometidos por pais e responsáveis, além dos abusos que atingem crianças e adolescentes por conta de conteúdos inapropriados, alguns até mesmo sugerindo e incentivando apostas e pornografia, quadros que podem resultar em sofrimento por conta da dependência e do trauma.