É uma parte do corpo evitada já no discurso. Falar “vagina”? Nem pensar! A palavra é metaforizada e escondida em diminutivos que não crescem com o passar do tempo. Além disso, ensinar a menina a se tocar e descobrir o próprio corpo? Que absurdo! O toque é condenado. E, assim, as mulheres crescem com medos, afastamento, nojo, neuras. Tudo relacionado ao que elas mesmas têm.
Com informações embasadas, mensagens de empoderamento e linguagem simples, a fisioterapeuta pélvica Ana Cristina Gehring busca fazer da vagina pauta. Desde fevereiro de 2016, ela mantém o Instagram @vaginasemneura. No espaço, costuma responder mulheres com dúvidas, compartilha conhecimento e prega o autoconhecimento, o autotoque, a saúde da mulher.
Nesta entrevista, ela ressalta a importância da educação sexual para a saúde, o bem-estar e o prazer.
[QUOTE1]O POVO %u200B- Queria começar entendendo de onde surgiu a ideia do Instagram @vaginasemneura. Quando e por qual motivo foi criado?
Ana Cristina Gehring - O Instagram surgiu porque eu sempre gostei muito de falar sobre sexualidade e saúde íntima. Eu percebo essa necessidade que as mulheres têm de chegar numa consulta ginecológica, de não ter com quem conversar, não ter alguém que realmente explique como as coisas funcionam. Foi feito em fevereiro de 2016 e, hoje, está com 73 mil seguidores. As mulheres têm muita carência de educação sexual.OP - O nome da página já indica que há neuras relacionadas à vagina. Quais a senhora identifica - nos comentários, nas consultas - como as mais frequentes?
Ana Cristina - As neuras mais frequentes são relacionadas à estrutura da vulva. As mulheres ficam preocupadas com o tamanho do clitóris, dos pequenos lábios, o escurecimento da virilha e também de como é a estrutura do canal vaginal. A maioria das mulheres nunca teve coragem de tentar colocar o dedo dentro do canal vaginal. Essa é uma das primeiras coisas que, dentro do meu consultório, elas são estimuladas: olhar a própria vulva, porque a maioria nunca pegou um espelho pra olhar, e, depois, introduzir o dedo pra sentir como é o colo uterino. Muita mulher fica achando que vagina tem que ser estéril, não pode ter cheiro forte, que não pode ter muco, e ficam constantemente passando pomadas dentro do canal vaginal, tentando eliminar uma secreção que é completamente normal e fisiológica.OP - Por que existem essas neuras relacionadas à vagina e ao corpo feminino? De onde surgem? E como elas afetam comportamentos da mulher?
Ana Cristina - As neuras começam em casa mesmo, quando a gente é criança. O menino é estimulado a tocar no seu pênis, fazer movimentos masturbatórios pra descolar a pelezinha, enquanto a menina não pode tocar na vagina. Depois tem nojo da menstruação. As neuras, então, são relacionadas à secreção e de como a família passa essas informações pra mulher. Às vezes, na própria família, as mulheres dizem que o sangue menstrual é podre, que se não sair a mulher fica doente… Às vezes, elas até tomam anticoncepcional e fazem a pausa “bem feliz”, achando que estão menstruando, e na verdade estão tendo um sangramento por privação de hormônios - não é nem a própria menstruação. As mulheres são enganadas tanto pela indústria farmacêutica quanto pela família, sim, e por tudo que a sociedade impõe à vagina, à nossa vulva. Como isso vai afetar? A primeira coisa que, pra mulher estar devidamente excitada, ela precisa receber cerca de 450ml de sangue na vagina. Então, pra ela ter essa resposta de sangue na região da vulva, precisa estar relaxada, tranquila. Se ela tiver alguma informação que a vagina dela não tá com cheiro adequado, que ela tá com uma secreção diferente, se ela tá num ambiente que não é propício, tem medo de perder a virgindade (se ainda é virgem)... Então, não vai chegar todo o sangue na região íntima, não vai ter excitação adequada, não vai lubrificar e a mulher não vai ter todo o prazer que poderia estar tendo, não vai ter orgasmo, e isso muitas vezes está relacionado às queixas dolorosas.OP %u200B- A indústria, vira e mexe, cria novos produtos para a limpeza e “embelezamento” da “região íntima”. Qual o limite desse cuidado - de higiene, de estética - com a vulva e a vagina?
Ana Cristina - O limite de cuidado é evitar pecar pelo excesso. Porque às vezes a gente quer deixar a vagina estéril, perfeita. Então, tudo que for creme pra vagina, coisas que estão inventando até de hímen falso, eu acho ridículo. Claro, às vezes tu tá num momento que quer testar. Não porque acha a vagina feia e ridícula. É porque tu quer testar alguma coisa nova, como se fosse um produto de sex shop. Então, o limite, se tu enxerga tua vagina como uma coisa legal e só quer dar mais uma mudadinha, experimentar algo diferente, fazer um momento único, beleza. O problema é quando tu quer incluir isso diariamente, como um desodorante íntimo pra tentar tapar algum cheiro, alguma secreção que deveria ser completamente normal.
OP - Há algum cuidado que a senhora indica para todas as pacientes, para a saúde dessa parte do corpo?
Ana Cristina - Cuidado que toda mulher deve ter: dormir sem calcinha, deixar a vagina respirando, evitar o protetor diário (que acaba abafando e produzindo mais secreção que às vezes sai amareladinha, esverdeadinha), o lenço umedecido deve ser utilizado na pele e não na mucosa - então, não se passa lenço umedecido toda vez que vai fazer xixi, não se usa duchinha. Os principais cuidados estão relacionados com isso e também usar algum sabonete de glicerina, que não tenha perfumes. Sabonetes íntimos, desses que a gente encontra na farmácia, eu já não curto, porque são produtos que têm cheiro, têm perfume e acabam irritando a região íntima. Tudo que for mais natural é melhor.
OP %u200B- O que o hábito de conhecer o próprio corpo, tocar-se, pode trazer para a mulher em relação à saúde e ao sexo?
Ana Cristina - Nossa, quando a mulher se conhece, começa a se tocar, ela entende a resposta fisiológica dela, entende o que tá acontecendo de errado e passa a produzir mais prazer. Uma queixa muito frequente é a disorgasmia (a dificuldade de atingir o orgasmo) ou até a anorgasmia (a mulher que nunca teve um orgasmo). Só que, às vezes, ela não sabe nem onde fica o clitóris dela. Isso é uma coisa super frequente! Então, o hábito de se tocar pode desde ela se conhecer, saber que algo não tá certo no corpo dela, pra procurar alguma assistência médica, como pra requisitar do parceiro o que ela precisa pra ter o máximo de prazer.
OP - Li em seu site que a fisioterapia pélvica pode tratar disfunções sexuais. Quais são as mais comuns? E há alguma causa específica para essas disfunções?
Ana Cristina - No meu consultório, eu praticamente só trabalho com reabilitação de disfunções sexuais femininas. As principais são vaginismo - impossibilidade de penetração. Por exemplo: a mulher tá casada há seis, sete anos, e nunca conseguiu introduzir nem um dedo (na vagina). Outra coisa é dispauremia - a dor na relação sexual, que não chega a impedir a penetração, mas em quase todas as relações sexuais tem algum desconforto. Tem também anorgasmia e disorgasmia. A (falta de) lubrificação não é bem uma disfunção sexual, mas é bem frequente. Normalmente, está relacionada com duas coisas: na verdade, tem todo o lado psicológico, mas tem a questão da musculatura. Quando a musculatura tá muito fraca, impossibilita que ela tenha o máximo de prazer, de lubrificação, e que consiga atingir um orgasmo. E quando a musculatura tá muito tensionada, o que acontece? Vai sentir dor na relação sexual.
OP - Como a fisioterapia pode contribuir para a vida sexual das mulheres?
Ana Cristina - A fisioterapia pélvica vai fazer exatamente essa reeducação na musculatura. No meu consultório, tenho aparelhos que medem a força, a resistência, a agilidade, a coordenação, o relaxamento da musculatura íntima. E aí a mulher consegue ter ideia de como anda a sua musculatura e a gente consegue direcionar o tratamento. Pra tu ter ideia, as nossas Glândulas de Bartholin, que são as glândulas que fazem a nossa lubrificação, são rodeadas por músculos. Se por acaso a musculatura não estiver forte o suficiente, não vai espremer a glândula adequadamente e não vai ter lubrificação muito menos a ereção do clitóris. Então, é muito importante pra mulher ter uma musculatura saudável e eficiente pra conseguir contrair nessas horas necessárias.%u200B
OP - O pompoarismo é uma das técnicas que a senhora utiliza para tratar disfunções sexuais. Como funciona?Ana Cristina - O pompoarismo é conhecido como manobras que a gente faz durante a relação sexual. Mas daí pra ter benefício sexual mesmo, melhora da lubrificação, sentir mais prazer e tudo mais, tem que fazer os exercícios diariamente, pra melhorar a musculatura e daí sim ter uma boa resposta sexual. No meu consultório, elas aprendem os exercícios básicos do pompoarismo e são instruídas com as manobras que podem ser feitas durante a relação sexual. Como requer muita coordenação da mulher e uma dedicação, a maioria acaba não sentindo tanto prazer só por fazer a contração durante a relação sexual. Isso é uma coisa que ela ganha depois, quando tem uma musculatura fortalecida. Não precisa nem contrair - porque, muitas vezes, quando a gente contrai, é mais o parceiro que se diverte do que a gente.