Quarta maior causa de morte de jovens entre 15 e 29 anos, suicídios ceifam as vidas de cerca de 11 mil pessoas todos os anos no Brasil. Multifatoriais, as mortes auto-infligidas reúnem predisposições fixas, como etnia (indígenas, por exemplo, têm taxa quase três vezes superior a média nacional) e sexo (para cada mulher que se suicida, há três mortes autoinfligidas de homens); e razões mutáveis - e potencialmente tratáveis. Parte deste segundo grupo, os transtornos mentais, como a depressão, estão associados a mais de 90% dos suicídios. Doença com aspectos biológicos e sociais, e sintomas comportamentais, físicos e de sofrimento mental, a depressão ainda é envolta em tabus e desinformação - principalmente entre jovens.
É o que indica a pesquisa recém-divulgada do Ibope Conecta, conduzida pela Upjohn, divisão focada em doenças crônicas não-transmissíveis, e pela área de Medicina Interna da Pfizer. Analisando o cenário de depressão e suicídio no País, o levantamento entrevistou 2 mil pessoas, em Fortaleza, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Distrito Federal. "O que ficou evidenciado é que a desinformação leva ao aumento do preconceito e, consequentemente, a não adesão ao tratamento psiquiátrico medicamentoso", observa a diretora médica da farmacêutica Márjori Dulcine.
Quatro em cada dez jovens de 13 a 17 anos e três em cada dez da faixa etária de 24 a 34 anos não se sentem à vontade para falar com a família sobre um diagnóstico de depressão. Em termos comparativos, apenas um idoso num grupo de dez diz que não falaria aos parentes caso fosse diagnosticado com depressão. Achar que os familiares acreditariam que eles só queriam chamar atenção e que não levariam a depressão a sério são os motivos mais citados.
Para o médico Teng Chei Tung, doutor em psiquiatria, os números e a opção por silenciar diante da doença demonstram que há um conflito intergeracional. Ele indica um trabalho em duas frentes: a primeira em estreitar laços entre adultos e adolescentes; e uma segunda em fornecer informações consistentes para que os adolescentes possam, com mais facilidade de conversar entre si, apoiarem-se mutuamente.
Promover um trabalho em família é um dos caminhos destacado por Dulcine. "A família não precisa tentar resolver isso sozinha. São ações que devem ser feitas em conjunto. A família, assim como o próprio indivíduo, pode buscar ajuda, informação correta, profissionais de saúde, organizações sérias", observa.
Envolta em tabus, a depressão é entendida ainda como "sinal de pouca fé" e "falta de Deus" para 11% dos entrevistados - outros 12% não estão convencidos de que não seja. Diante disso, Teng, que é coordenador do serviço de interconsultas e pronto-socorro do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da Comissão de Emergência Psiquiátrica da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), reforça que há, sim, determinantes biológicos. "Ao entender a depressão apenas como um problema de cunho sociológico ou religioso, se nega as causas biológicas, se tira o papel do psiquiatra do centro do tratamento e leva a uma desassistência."
Cenário da depressão
35% dos fortalezenses acreditam ou têm dúvida sobre depressão ser causada pela "falta de Deus".
A Cidade é a que mais acha que a doença é um sinal de fraqueza (20%).
25% não sabem ou não acreditam que a doença pode ser tratada com sucesso.
69% dos fortalezenses não sabem que a doença é mais comum em pessoas com histórico na família.
40% acreditam que para curar a depressão basta ter alegria e atitudes positivas perante a vida. Dado 10% acima da média nacional.
Mais da metade dos fortalezenses (54%) desconhecem que a depressão é um transtorno mental ligado ao desequilíbrio de substâncias no cérebro.
Entre os entrevistados que não iriam ao psiquiatra para tratar um quadro de depressão (10%), as principais justificativas para tal atitude foram: "Prefiro tentar outros tipos de apoio, como conversar com os amigos" (52%); e "Acho que o psiquiatra trata doenças mentais mais graves e depressão não é algo tão sério" (26%).
Em caso de diagnóstico de depressão, 43% não se sentiriam à vontade para falar sobre o assunto no trabalho e/ou escola.
Entre os principais motivos apontados para não falar sobre depressão no trabalho e/ou escola estão: "As pessoas não levam a depressão a sério e não vão acreditar que estou doente" (59%), "Não quero que sintam pena de mim" (45%) e "Tenho receio de ser hostilizado ou ridicularizado pelos meus colegas" (35%).
No âmbito familiar, os fortalezenses são os que mais têm medo de atrapalhar e preocupar os familiares em caso de depressão (63%). A média nacional foi 36% para essa resposta.
Fonte: Ibope Conecta / Pfizer
Onde procurar ajuda
CVV - Centro de Valorização da Vida
Apoio emocional e prevenção do suicídio por telefone, e-mail e chat 24 horas todos os dias
Site: https://www.cvv.org.br/
Telefone: 188 ou (85) 3257 1084
Centro de Atenção Psicossocial (Caps)
15 centros em Fortaleza que prestam atendimento para pessoas que apresentam sofrimentos psíquicos e/ou transtornos mentais severos e persistentes, além de dependentes químicos. Atendimento de segunda a sexta: das 8h às 12h, e das 13h às 17h
Site com endereços: https://bit.ly/2XoBTwB
Programa de Apoio à Vida (Pravida)
Projeto de extensão da UFC que presta serviço de assistência terapêutica e prevenção a pessoas que tentam suicídio.
Telefone: (85) 98400 5672
Endereço: Hospital das Clínicas - Unidade de Saúde Mental (rua Cap. Francisco Pedro, 1290 - Rodolfo Teófilo - atrás do Hemoce)
Instituto Bia Dote
Instituto com diversas ações de prevenção ao suicídio, entre elas um projeto de atendimento psicológico gratuito.
Endereço: avenida Barão de Studart, 2360 - Sl 1106 - Aldeota
Telefone: (85) 3264 2992 e 99842 0403
E-mail: contato@institutobiadote.org.br
Um olhar para os homens
Tristeza incapacitante, falta de apetite, perda de peso, angústia que não cessa e agressividade incomum. Os sintomas que muitas vezes paralisam Evandro Fernandes, 51, o acompanham há quatro anos. Os primeiros sinais coincidiram com um momento de tensão que o graduado em filosofia viveu no emprego. Mas, com repercussões físicas, o diagnóstico de depressão demorou quase dez meses a ser ventilado. "Eu ia com o coração acelerado ao pronto-socorro, tendo perdido dez quilos em menos de dois meses. Se faziam os exames e não dava nada. Até o dia que uma médica, numa das minhas idas de madrugada ao hospital, disse que o que eu tinha era depressão", relembra.
Evandro conta que até hoje sente dificuldade de entender a depressão como doença. Ele sabe o que sente; sabe das duas tentativas de suicídio; sabe que, mesmo nos melhores dias, é impelido a ficar na cama; sabe que depende da medicação e das idas mensais à psiquiatra. Mas, ainda assim, a ideia de uma enfermidade que não é detectada por um exame de imagem, como seria um problema de coração, por exemplo, o confunde.
A pesquisa do Ibope Conecta e Pfizer, que traça um panorama sobre os tabus que envolvem a depressão e o suicídio no País, vão ao encontro de como Evandro percebia a doença que o acomete. Ligar depressão a fraqueza, por exemplo, é comum para 29% dos homens e 55% dos entrevistados dos sexo masculino não estão convencidos de que não bastam atitude positiva e alegria para vencer a doença.
As estimativas são de uma proporção de um suicídio de mulher para três de homens. O médico psiquiatra, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenador do Programa de Apoio à Vida (Pravida), Fábio Gomes de Matos, indica, para explicar os números, a letalidade dos métodos de suicídio procurados pelos homens e, ainda, a rede de apoio e os vínculos afetivos a que as mulheres têm mais acesso.
"Existe um machismo muito grande. Não tenho abertura para falar com nenhum amigo homem sobre a depressão", relata Evandro.
"A prevenção nos homens é muito mais desafiadora. Os homens acham que ter depressão é frescura, é besteira, que não existe. Enquanto eles não buscam ajuda, não aderem a um tratamento psicossocial, a depressão está avançando e piorando o seu estado mental", observa o médico.
Evandro define a depressão como "um poço escuro que a gente nada sem saber pra onde vai", e busca no tratamento forças para emergir. "Ponho como norte nunca desistir do dia de amanhã, e saber que amanhã vai ser melhor que hoje", sustenta. (Domitila Andrade)
"Se não abrirmos a porta, a pessoa se tranca"
Treinar a atenção básica de saúde para estar de olhos abertos à depressão e à ideação suicida, e preparar agentes de saúde, enfermeiros, médicos a perguntar sobre saúde mental. São caminhos indicados para diminuição dos casos de suicídio no Brasil pelo psiquiatra e professor voluntário da Universidade Estadual Paulista (Unesp), consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS) e criador do Dia Mundial da Prevenção do Suicídio, dia 10 de setembro, José Manoel Bertolote. Em Fortaleza para seminário do Projeto Vidas Preservadas, do Ministério Público do Ceará (MPCE), falou ao O POVO sobre a prevalência da depressão nos casos de mortes auto-inflingidas e sobre as deficiências no combate a questão que mata cerca de 11 mil brasileiros por ano.
O POVO - Há em muitos países uma diminuição no número de casos de suicídio. E no Brasil, os números aumentam. O que leva a isso?
José Manoel Bertolote - O Brasil não tem uma política pública implantada de prevenção do suicídio. Existe uma portaria de 2005, esquecida em alguma gaveta do Ministério (da Saúde) e uma recente portaria de prevenção de suicídio e de automutilação. Eu considero muito frágil, pouco robusta, insuficiente para enfrentar a magnitude do problema que nós temos. No Brasil, é um problema muito ligado à estrutura dos cuidados de saúde mental, que vem sendo levada por uma direção que não ajuda a prevenção de suicídio.
OP - Que exemplos de políticas de outros países poderiam ser incorporados pelo Brasil?
Bertolote - Existe quatro ou cinco estratégias gerais. A primeira delas é adotar uma política, reconhecendo que o suicídio é um problema de saúde pública e, a partir daí, tomar as medidas apropriadas. Dependendo do método de suicídio empregado, o controle dos métodos é uma estratégia muito eficaz, sobretudo em locais em que os métodos são ingestão de substâncias tóxicas, como pesticidas, por exemplo. Nos países onde isso foi controlado, a queda dos números de suicídio foi dramática. No Brasil, essa é uma abordagem de pouco resultado esperado, porque a maioria dos suicídios aqui é por enforcamento. Não dá pra controlar cordas. Onde é por arma de fogo, controlar o acesso à arma de fogo é eficaz. Uma outra medida bastante eficaz é a regulação da mídia, porque a mídia pode ser um grande aliado na prevenção do suicídio, ou pode contribuir grandemente para aumentar o suicídio. Hoje, existem diretrizes sobre como deve ser a cobertura da mídia. O que é comum de todos os países é que a grande maioria de todos os casos de suicídio são de pessoas portadoras de transtornos mentais. E o tratamento adequado desses transtornos é uma forma extremamente eficaz de reduzir esses suicídios. E aqui é onde o Brasil tem uma deficiência. O sistema de saúde mental do Brasil, em geral, é muito precário. Temos os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) todos lotados com impossibilidades de atendimento e suicídio é uma emergência. E são raríssimos pronto-socorros que têm equipe de saúde mental com psicólogo, enfermeira treinada, ou mesmo psiquiatra. Nesse sentido, o Brasil deve esperar ainda um aumento da taxa de suicídio, até que a rede de atenção de saúde mental seja melhorada. E, contrariamente a política dos governo anteriores e do governo atual, a estratégia melhor é a capacitação da rede básica, para, primeiro, ter o olho aberto para perguntar sobre isso. A experiência mostra que enfrentar o problema abertamente é o alívio para um indivíduo numa crise suicida, porque, habitualmente, ele se sente muito isolado, sozinho. Quando ele se depara com alguém que reconhece a situação dele, a ansiedade dele baixa.
OP - Como as famílias podem agir diante do números crescentes de suicídios de jovens?
Bertolote - As três doenças mentais mais comumente associadas com o suicídio são a depressão, o alcoolismo e a esquizofrenia. E são três doenças nas quais, em geral, o paciente não se reconhece como doente. Para o esquizofrênico delirante é o mundo que está errado e não ele; para o alcoolista ele bebe normalmente; e o deprimido não se enxerga direito. E esperar que o deprimido tome a iniciativa é otimista demais. Então, por isso precisamos informar a população e educar os profissionais de saúde para fazer o que se chama de busca ativa. E diante de alguns sinais, muito ainda que débeis, acentuar a investigação. É preciso observar mudanças comportamentais, que é talvez o sinal mais claro que familiares, colegas de escola ou de trabalho e amigos percebem. Muda o comportamento das pessoas, se retrai muito, ou se torna social demais, ou muito agitado. Isso, principalmente em jovens, são os primeiros sinais de um problema. Um outro patamar, têm os sinais de que o indivíduo de várias formas se cansou da vida, não aguenta mais, não vê mais graça em viver, a pessoa começa a se despedir das pessoas, dar coisas de que ela gosta muito, distribuir seus bens. E o terceiro, que é sinal vermelho, é quando a pessoa diz que quer morrer. Existe um estudo em que, dos 24 casos, um terço tinha dado mais ou menos sinais inequívocos de que ia acontecer. É preciso investigar, e é preciso ter coragem de nos aproximarmos das pessoas, abordar, perguntar se pode ajudar, indicar ajuda profissional. Se não abrirmos a porta, a pessoa se tranca.
OP - Os números de mortes auto-infligidas por homens é muito superior ao de mulheres. Como o senhor analisa essa diferença?
Bertolote - Nós tendemos a ver o que faz as pessoas se suicidarem. Eu insisto em olhar o que faz as pessoas não se suicidarem. Me interessa muitíssimo, como pesquisador, por que as mulheres, que vivem com os mesmos homens, não se suicidam? As mulheres têm mais fatores de proteção que os homens. As mulheres têm muito mais facilidade de admitir que não estão bem e procurar ajuda. Os homens, machões, acham que aguentam. Até a hora que quebram. As mulheres, muitas delas, por se queixarem, nem chegam a situação de suicídio, porque elas têm o sofrimento identificado mais cedo, e isso é encaminhado numa fase anterior. Elas conversam e isso alivia a carga e desarma. A rede social de mulheres é muito maior do que a rede social dos homens. E as relações são mais fortes. E as mulheres têm uma forma de relacionamento que os homens jamais terão: a maternidade. Já ouvi inúmeras mulheres dizerem que não se matam por causa dos filhos. Eu nunca vi homens sequer pensarem nisso.
OP - Em que consiste as autópsias psicológicas?
Bertolote - A autópsia psicológica ou autópsia psicossocial tem esse nome porque é uma autópsia que se realiza após alguém ter morrido, que não tem de ser necessariamente de suicídio. Diante de um óbito, em geral quando a causa não é esclarecida, se vai investigar com pessoas próximas a pessoa falecida - parentes, amigos, colegas - uma série de características psicológicas e sociais das pessoas que possam lançar uma luz sobre o que aconteceu. No Brasil, tem, pelo que eu saiba, só quatro estudos feitos. É um estudo dispendioso.
SETEMBRO AMARELO
A depressão e outros transtornos mentais estão na trama multifatorial que leva aos 11 mil casos de suicídio no Brasil. Com causas sociais e biológicas, a doença ainda é envolta em tabus e desinformação, principalmente entre jovens. Homens também estão entre os que, diante da vergonha de assumir a depressão, mais tiram a própria vida. No mês de prevenção ao suicídio, informar-se, buscar tratamento psiquiátrico e psicológico, criar redes de apoio e fomentar mudanças na saúde pública são caminhos propostos por especialistas no enfrentamento dos crescentes números de mortes auto-infligidas.