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Colmeias de abelhas que reúnem gente
Ciência e Saúde

Colmeias de abelhas que reúnem gente

| Cultivo | A criação de abelhas sem ferrão tem se consolidado em Fortaleza e reunido grupos de amigos e família para troca de informações sobre os insetos
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A meliponicultura  trabalha com as chamadas abelhas sem ferrão, nativas do Ceará (Foto: Mauri Melo)
Foto: Mauri Melo A meliponicultura trabalha com as chamadas abelhas sem ferrão, nativas do Ceará

O encantamento pelas abelhas começa assim: uma pessoa já iniciada nos fundamentos de criação começa a falar sobre os hábitos dos insetos que possui em casa e desperta a curiosidade de quem se demora um pouco mais a ouvir. Esse indivíduo, por sua vez, coleta o máximo de informações que pode, até procurar um curso que aprimore seus conhecimentos rudimentares.

Aos poucos, família e amigos acabam se envolvendo e as conversas passam a girar em torno de questões não tão comuns para quem vive em um ambiente urbano, com palavras como "pólen" e "néctar" sendo ditas com frequência. Quando se dão conta, já estão todos comprometidos com as rainhas e seus enxames.

Foi assim com o agrônomo Kléber Sabino, 38. Há dois anos, um amigo do Rio Grande do Norte, estado referência na criação de abelhas sem ferrão, foi o responsável pelas histórias sobre os insetos. "Comecei a pesquisar mais a fundo e senti a necessidade de passar por uma formação, algo que encontrei no Parque Botânico do Ceará", lembra. Lá, conheceu a zootecnista Hiara Meneses, instrutora do curso e que agora acompanha a situação das colmeias que Kléber instalou no pequeno quintal da casa que possui no bairro Álvaro Weyne, em Fortaleza.

Kléber envolveu amigos, sobrinho e até a mãe, a qual, sendo habilidosa com a pintura, ilustrou uma colmeia - a casa das abelhas - com a imagem de uma casa de humanos. O sobrinho de nove anos foi o marceneiro responsável pelo "projeto arquitetônico". "A meliponicultura também me fez perder o medo de trabalhar com a marcenaria. Hoje já não me sinto inseguro e corto madeira para fazer as colmeias sem problemas", acrescenta.

Ao contrário da apicultura, que é a criação de abelhas com ferrão e alta produtividade de mel, como as da subespécie Apis mellifera, muito comum em todo o Brasil, a meliponicultura trata daquelas que "não têm ferrão" - na verdade, o ferrão existe, mas atrofiado.

Jandaíra, jataí, uruçu e cupira são apenas algumas das espécies preferidas por produzirem um mel fino, amarelo-claro e com toque de sabor que pode ser levemente ácido. Orgânico, o mel dessas abelhas tem boa aceitação no mercado, onde é utilizado para fins medicinais e culinários, e a criação é mais barata em relação à das abelhas com ferrão por não exigir roupas e equipamentos especiais.

"É uma atividade que vem crescendo nos últimos anos e não deixa de ser um resgate da tradição que as pessoas tinham antes, principalmente no Interior, de terem suas próprias abelhas para extrair o mel para consumo próprio", afirma Hiara. "Quem começa a aprender sobre meliponicultura acaba adquirindo conhecimentos em diversas áreas, porque se começa a descobrir quais plantas são boas para as abelhas. Então acontece bastante das pessoas se apaixonarem também pela cultivo de espécies nativas", acrescenta.

O quintal de Kléber tem banana, acerola, banana, carambola e mamão. Um pequeno vaso para plantas aquáticas também abriga pequenos peixes e serve de fonte de água para as abelhas. É um minioásis no meio de uma cidade cheia de concreto e cinza que atrai visitantes curiosos - do falcão que passa todas as tardes para beber água no vaso até os vizinhos, muitos sem saber que existiam abelhas sem ferrão.

O pote de mel que Kléber recolhe é para consumo próprio e fica guardado na geladeira - cristalizado, com textura parecida com a de uma geleia. A produção de mel é diminuta, e o agrônomo prefere multiplicar novas colmeias e compartilhar com os amigos, após uma sondagem inicial sobre o interesse do amigo em dedicar tempo e cuidado à rainha e às centenas de operárias.

"Ninguém para somente na criação de abelhas. Cria-se uma rede de amizade e troca de conhecimentos. Nos grupos de troca de mensagens, a gente ajuda a resolver os problemas uns dos outros, se doa ovos da rainha, e por aí vai. Encontrar pessoas com os mesmos interesses foi mais fácil do que eu imaginava", afirma o criador. "No final, a colmeia humana se agrupa e se ajuda também", conclui.

Onde aprender

Veja onde fazer cursos sobre abelhas sem ferrão em Fortaleza:

Parque Botânico do Ceará (Estrada José Aragão e Albuquerque, s/n - Itambé, Caucaia).Mais informações: (85) 3342 0794

Curso de meliponicultura teórico/prático com Hiara Meneses e Francisco Ximenes Braga

Datas: 15, 16 e 17 de novembro

Local: meliponário São Francisco (Estrada da Aroeira, Aquiraz)

Mais informações: (85) 99663 5102

Dicas para criação em casa

Dá para ter uma colmeia em um quintal pequeno e mesmo em uma varanda de apartamento. Veja como:

Escolha a
espécie de abelha

Como as abelhas melíponas não têm ferrão, os riscos de incomodar os vizinhos é mínimo. No Ceará, algumas das variedades mais indicadas são as jataí, rajada (monduri), mandaçaia, uruçu-nordestina, uruçu-verdadeira, jandaíra e tubi. "Importante ressaltar que essas abelhas não podem ser extraídas da natureza sem autorização, porque é crime ambiental, já que fazem parte da fauna brasileira", adverte o professor e agrônomo Breno Magalhães. "As colmeias podem ser adquiridas por criadores autorizados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) ou por resgate em mata que seja derrubada com autorização do órgão", complementa.

Compre ou construa uma casa para elas

As caixas para as colônias geralmente são feitas de madeira e possuem medidas variáveis (as mais comuns têm 20 cm x 60 cm). Quem não tem habilidade com marcenaria pode comprar o artefato em algumas casas de produtos agropecuários, apiários de universidades e criadores. "Na verdade, tem gente que faz verdadeiras obras de arte com as colmeias, que podem ser customizadas ao gosto do criador", aponta o criador Kléber Sabino.

Forneça o alimento

O mel é o alimento das abelhas. Quando estiver começando uma colônia ou se não houver plantas com flores perto de casa, complemente a alimentação colocando mel ou pólen em pó (vendido em lojas) dentro da colmeia.

Escolha um
lugar adequado

As colmeias podem ficar em galhos das árvores ou em ripas do telhado, suspensas a uma altura de dois metros do chão e penduradas por arames. Dessa forma, se evita a ação de predadores, como formigas e cupins.

Faça (ou tenha
ajuda para fazer)
o manejo de
colônias

Em poucos meses, as abelhas de uma colmeia se reproduzem tanto que precisam de uma nova colônia. Essa parte é delicada e provavelmente necessitará de ajuda profissional para fazer a primeira transferência
do enxame para uma
caixa nova.

Colete o mel
com delicadeza

Ao pegar o mel, use uma seringa e tome cuidado para não danificar os potinhos nem secá-los totalmente, já que as abelhas também vão se alimentar dele. "As jandaíras pode produzir de 1,5 a dois litros por ano, o que é pouco, comparada às abelhas sem ferrão", indica a zootecnista Hiara Meneses. "Apesar da baixa produção, o mel é valorizado e chega a ser vendido de R$ 150 a R$ 200 (o litro)", afirma.

Fonte: também com informações do "Manual de aproveitamento integral dos produtos das abelhas nativas sem ferrão" - Jerônimo Villas-Bôas (2018)

Agrotóxicos: grandes inimigos

A frase do cientista Albert Einstein sobre as abelhas foi dita no século passado, mas se mantém na memória coletiva como um alerta para o futuro: "Se as abelhas desaparecerem da face da Terra, a humanidade terá apenas mais quatro anos de existência. Sem abelhas não há polinização, não há reprodução da flora, sem flora não há animais, sem animais, não haverá raça humana".

O medo de um possível desequilíbrio ecológico que ameace a nossa existência sobre a Terra não é injustificado tampouco ultrapassado: somente no primeiro trimestre do ano, mais de meio bilhão de abelhas utilizadas na apicultura foram mortas nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Mato Grosso do Sul, de acordo com o levantamento da agência de notícias Pública e ONG Repórter Brasil. Segundo especialistas e exames laboratoriais analisados pela pesquisa, 80% das mortes se deram pelo uso indiscriminado de agrotóxicos.

No dia primeiro deste mês, o deputado estadual Renato Roseno (PSOL-CE) deu entrada a um projeto de lei vedando no Ceará a utilização de alguns agrotóxicos à base de neonicotinóides, um derivado da nicotina que está presente em muitos pesticidas liberados neste ano no Brasil, apesar do uso já ter sido proibido nos Estados Unidos e em países da União Europeia.

"Peço que todos os parlamentares leiam a minha proposta para entender o porquê do perigo da comercialização dessas substâncias que matam abelhas e outros insetos essenciais à promoção da biodiversidade e polinização, afetando diretamente a agricultura e a produção de mel no Ceará", afirmou, referindo-se ao fato do Ministério da Agricultura ter liberado no semestre o maior número de pesticidas para o mesmo período, comparado à última década.

O Ceará é o segundo maior produtor de mel do Nordeste, perdendo apenas para Piauí, que também é o terceiro estado com maior produção do Brasil, de acordo com a pesquisa Produção da Pecuária Municipal 2018 (PPM) divulgada em setembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Rio Grande do Sul e Paraná lideram a produção nacional.

No entanto, há quem se preocupe principalmente com os outros impactos, para além dos prejuízos sofridos pela atividade apicultora. É o caso de Breno Magalhães Freitas, engenheiro agrônomo, PhD em Abelhas e Polinização e criador do grupo de pesquisas com abelhas da Universidade Federal do Ceará (UFC). Para o pesquisador, a situação é muito mais grave do que é noticiada.

"Entendo a consternação dos apicultores ao ver suas abelhas mortas, mas é muito mais preocupante a questão das nossas abelhas nativas. Os criadores das abelhas exóticas (Apis mellifera, abelha européia ou africanizada) podem fazer um levantamento e analisar as que morreram pelo efeito dos pesticidas. Mas e as nativas, quem as analisa na mata? Não se vê notícia sobre elas na mídia", questiona.

Segundo o professor, as colmeias nativas também estão sendo reduzidas em virtude da devastação e do desmatamento causados pela urbanização, aquecimento global e doenças causadas pelo contato com espécies introduzidas indiscriminadamente pela ação humana.

Apesar do cenário pré-apocalíptico, há iniciativas que podem fazer a diferença. "Alguns setores do agronegócio já perceberam que precisam das abelhas para manter a produtividade, caso de culturas como as de maçã e melão, as quais, historicamente, sempre utilizaram muitos produtos químicos. Hoje, os produtores se deram conta que as abelhas são importantíssimas para a polinização, o que fez com que eles tivessem mais cuidado com o uso de pesticidas", exemplifica.

O pesquisador também destaca a realização, no mês passado, de uma audiência pública em Brasília para debater o projeto de lei que traz medidas de preservação de espécies animais responsáveis pela polinização, como pássaros, abelhas e morcegos. A audiência foi convocada a pedido do senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), relator do projeto. "Tal medida é necessária porque das 20 mil espécies de abelhas que existem no mundo, há três mil só no Brasil", destaca. (Flávia Oliveira)

FORTALEZA, CE, BRASIL, 02-10-2019: Victória Vieira, 21 anos. Meliponário na Casa José de Alencar, em Messejana. (Foto: Mauri Melo/O POVO).
FORTALEZA, CE, BRASIL, 02-10-2019: Victória Vieira, 21 anos. Meliponário na Casa José de Alencar, em Messejana. (Foto: Mauri Melo/O POVO).

Meliponário ensina sobre educação ambiental a partir das abelhas

Dona Berenice Silva tem 69 anos e esteve na Casa de José de Alencar na manhã da quarta-feira, 2, junto com outros idosos atendidos pelo Centro de Referência da Assistência Social (Cras) Antônio Bezerra.

Na Casa, equipamento cultural da Universidade Federal do Ceará (UFC), funciona o Meliponário Iracema de Educação Ambiental, inaugurado em setembro. O projeto recebe grupos agendados para falar de educação ambiental, utilizando as abelhas sem ferrão e sua importância na polinização e produção de alimentos, além da preservação da natureza e equilíbrio do ecossistema.

Nascida em Pacoti, município localizado na Serra de Baturité (distante 90 km da Capital), dona Berenice se diz familiarizada com as abelhas nativas sem ferrão. "Quando menina, no Pacoti, eu ajudava no sustento da família pegando mel das jataí, das jandaíra, das uruçu. Naquela época, a opção era trabalhar nos cafezais ou com o mel. Era assim para muitas famílias do Interior, principalmente para as da serra", lembra.

A menina entrava na mata e procurava as colmeias nos troncos de árvores. "Me machucava mais quando caía de uma árvore ou quando me arranhava em algum espinho, porque as bichinhas mesmo, não picavam. Às vezes, mordiam, mas era uma mordidinha leve, feito de formiga", recorda.

Ao ouvir a monitora explicar que as abelhas utilizam vários métodos para retornarem às colmeias, incluindo a memória visual, dona Berenice jura que elas também marcam o rosto das pessoas e as reconhecem onde quer que elas estejam. "Por isso que elas sempre me encontravam, mesmo se eu estivesse na igreja ou na escola. Elas sabiam que era eu que mexia nas colmeias delas, aí vinham se enrolar nos meus cabelos ou cair na minha comida", brinca.

Victoria Vieira, 21, estudante de zootecnia da UFC e monitora do projeto Meliponário, diz que apesar de serem conhecidas por não terem ferrão, as abelhas de fato usam outras estratégias de defesa. "Há uma abelha, a tataíra, também chamada de 'caga-fogo', que expele um ácido que pode causar até queimaduras", diz, referindo-se à espécie que é encontrada em outras regiões do Brasil.

"Usamos as jandaíras no projeto porque elas são mais tranquilas e não costumam se enroscar nos cabelos dos visitantes. No entanto, não temos muita variedade de espécies - as que recebemos, foram de doação. Inclusive, se alguém tiver criação e desejar doar, estamos abertos", complementa. (Flávia Oliveira)

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