Imprimir um coração, criar tecido humano em laboratório, transformar um rim de uma espécie em órgão compatível para outra. Tecnologias que parecem saídas de livro e filmes de ficção científica estão mais perto de serem realidade, inclusive no Brasil.
O norueguês Andreas Kaasi, bioengenheiro no Instituto de Pesquisa, Inovação Tecnológica e Educação (Ipitec) da Santa Casa de São Paulo e fundador da empresa de biotecnologia Eva Scientific, esteve na Fiocruz Ceará no último mês e palestrou sobre as inovações em biotecnologia.
O POVO - A biofabricação compreende um amplo leque de áreas e técnicas, entre elas estão as bioimpressoras 3D e os biorreatores. Em quais aspectos esses dois métodos se diferenciam?
Andreas Kaasi - A diferença pode ser resumida em quatro palavras: em inglês, "bottom-up" e "top-down", ou seja, de baixo para cima e de cima para baixo. Você tem um órgão, uma estrutura biológica complexa, que você precisa reconstituir por meio de ingredientes e uma "receita do bolo". Bottom-up é o exemplo clássico da bioimpressão 3D: tem os ingredientes básicos - as células, substâncias como o colágeno e outras moléculas - e você vai depositando esses ingredientes nos locais certos, das camadas mais básicas até as superiores. Assim vai se formando aos poucos o tecido tridimensional. Já o biorreator é "top-down". Você começa com algo já constituído e tridimensional, que pode ser de um outro animal, como o porco - que é bastante indicado do ponto de vista de tamanho e anatomia dos órgãos -, e vai transformando suas unidades mais básicas. Ambas as técnicas têm seus méritos e o ideal é trabalhar com as duas para sinergicamente constituir algo ainda mais sofisticado.
OP - Desde sua graduação na Dinamarca, o senhor se especializa na medicina regenerativa, na engenharia de tecidos e especialmente no desenvolvimento dos biorreatores. Quais os processos envolvidos nesse método para a construção de órgãos?
Andreas Kaasi - A utilização dos biorreatores é um método da engenharia de tecidos com a finalidade de ser uma alternativa aos métodos clássicos de transplante de órgãos. Trabalhamos esses órgãos retirando as células dos porcos que se transplantadas nos humanos causariam rejeição e depois povoamos com células humanas. O processo é, a grosso modo, a transformação de órgãos sólidos suínos, como rim, coração ou fígado, em órgão humanos. A primeira etapa, chamada descelularização, pode ser considerada uma lavagem que pega um órgão de um suíno recém-abatido e circula um fluido orgânico, que é como um detergente orgânico, por dentro do órgão. Temos então um órgão indefinido, neutro. No segundo processo, a recelularização, pegamos material do próprio paciente e colocamos no órgão para que ele se torne o órgão do próprio paciente. Daí você tem a "fórmula mágica" para criar órgãos.
OP - Apesar dos avanços na área médica, segundo o Registro Brasileiro de Transplantes, cerca de 36,5 mil pessoas lutam pela vida e estão na fila de espera por um órgão. Quais contribuições podemos esperar da bioengenharia?
Andreas Kaasi - Para os casos graves e sem potencial de melhora espontânea com os métodos existentes, a aplicação da bioengenharia é uma chance de vida por métodos alternativos. Esses pacientes poderão se candidatar a estudos clínicos experimentais e ter bons resultados. O investimento é grande, são riscos que se corre, mas muitos já sentem que não têm o que perder. Eu acho que os biorretores, a bioimpressão 3D e a biofabricação no geral representam uma lufada de ar fresco para a nossa necessidade de atender aos milhares de pessoas que aguardam por um órgão. Com mais pesquisa, mais desenvolvimento, mais inovação e empreendedorismo usando essas ferramentas e alavancando o que já existe é possível chegar a um novo paradigma. Acredito que daqui a 100 anos, os pesquisadores vão olhar para a história e reconhecer que estamos operando uma mudança para o melhor.
OP - Nessa perspectiva, estamos a quantos anos de poder utilizar essas técnicas com maior frequência nos procedimentos médicos?
Andreas Kaasi - Depende do tecido e do órgão em questão. Quando se trata de um rim, que pode ser considerado factível de se conseguir em um curto prazo, estamos falando de oito a dez anos. Para alguns tecidos menos complexos, a córnea é um exemplo, podemos falar de um prazo menor, e um órgão mais complexo, como o coração, talvez leve mais tempo, mas isso não é desanimador. Temos avanços significativos na área. Um empresa italiana conseguiu ainda em 2015 a aprovação na Europa de um tecido da córnea bioproduzido para tratar uma doença rara causada por queimaduras nos olhos. Outro exemplo é uma bexiga feita por meio da engenharia de tecidos e implantada de forma bem sucedida nos Estados Unidos; lá também já estão caminhando para esse produto ser autorizado no mercado. As biomebranas de colágeno biofabricado também já são uma realidade para a medicina regenerativa. Estes novos produtos à base de colágeno, além de comercializados como matéria-prima, podem ser utilizados como base para produção de tecidos biológicos vivos para estudos pré-clínicos minimizando o uso de animais, principalmente para indústria de cosméticos. Além disso o uso veterinário também está se desenvolvendo. Tudo depende da força de vontade, do investimento e do comprometimento dos grupos de interesse envolvidos.
OP - Até lá, quais os principais desafios a serem enfrentados pelos pesquisadores e pela sociedade?
Andreas Kaasi - Tem um desafio que tem a ver com o escalonamento da obtenção de células com a qualidade e a quantidade necessária. A técnica de cultura de células mais manual e tradicional que temos hoje é ineficiente. Para um rim são necessárias de 60 a 80 bilhões de células e conseguimos mil vezes menos e de forma muito trabalhosa. Uma saída é a automação. Os métodos de biorreatores também estão em estado de otimização, mas isso depende das empresas e da adoção em larga escala pelos centros de pesquisa. Então este é um desafio tecnológico e também político-acadêmico. No aspecto ético, as discussões também avançam. A utilização dos órgãos de porco não passam por um desafio significativo porque não somos nós quem abatemos. Os corações, rins e fígados vêm de matadouros que são parceiros, já que tais órgãos têm pouco valor agregado para fins alimentícios, mas são de grande valor para a Ciência. Sobre a produção de tecidos e órgãos em laboratório, os parâmetros éticos estão alinhados com os mesmo adotados pelas terapias celulares já aprovadas, a diferença é que desejamos fazer algo maior: juntar as células para fazer tecido. Seria uma inovação incremental de uma legislação já em vigor.