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Produzir órgãos em laboratório já não é ficção científica
Ciência e Saúde

Produzir órgãos em laboratório já não é ficção científica

| Transplantes | Pesquisadores estimam que até 2030 córneas e rins fabricados estarão aliviando as filas de pessoas que esperam por órgãos
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Tipo Notícia
Andreas Kaasi, bioengenheiro, palestrou na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Eusébio (Foto: Mauri Melo)
Foto: Mauri Melo Andreas Kaasi, bioengenheiro, palestrou na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Eusébio

Imprimir um coração, criar tecido humano em laboratório, transformar um rim de uma espécie em órgão compatível para outra. Tecnologias que parecem saídas de livro e filmes de ficção científica estão mais perto de serem realidade, inclusive no Brasil.

O norueguês Andreas Kaasi, bioengenheiro no Instituto de Pesquisa, Inovação Tecnológica e Educação (Ipitec) da Santa Casa de São Paulo e fundador da empresa de biotecnologia Eva Scientific, esteve na Fiocruz Ceará no último mês e palestrou sobre as inovações em biotecnologia.

O POVO - A biofabricação compreende um amplo leque de áreas e técnicas, entre elas estão as bioimpressoras 3D e os biorreatores. Em quais aspectos esses dois métodos se diferenciam?

Andreas Kaasi - A diferença pode ser resumida em quatro palavras: em inglês, "bottom-up" e "top-down", ou seja, de baixo para cima e de cima para baixo. Você tem um órgão, uma estrutura biológica complexa, que você precisa reconstituir por meio de ingredientes e uma "receita do bolo". Bottom-up é o exemplo clássico da bioimpressão 3D: tem os ingredientes básicos - as células, substâncias como o colágeno e outras moléculas - e você vai depositando esses ingredientes nos locais certos, das camadas mais básicas até as superiores. Assim vai se formando aos poucos o tecido tridimensional. Já o biorreator é "top-down". Você começa com algo já constituído e tridimensional, que pode ser de um outro animal, como o porco - que é bastante indicado do ponto de vista de tamanho e anatomia dos órgãos -, e vai transformando suas unidades mais básicas. Ambas as técnicas têm seus méritos e o ideal é trabalhar com as duas para sinergicamente constituir algo ainda mais sofisticado.

OP - Desde sua graduação na Dinamarca, o senhor se especializa na medicina regenerativa, na engenharia de tecidos e especialmente no desenvolvimento dos biorreatores. Quais os processos envolvidos nesse método para a construção de órgãos?

Andreas Kaasi - A utilização dos biorreatores é um método da engenharia de tecidos com a finalidade de ser uma alternativa aos métodos clássicos de transplante de órgãos. Trabalhamos esses órgãos retirando as células dos porcos que se transplantadas nos humanos causariam rejeição e depois povoamos com células humanas. O processo é, a grosso modo, a transformação de órgãos sólidos suínos, como rim, coração ou fígado, em órgão humanos. A primeira etapa, chamada descelularização, pode ser considerada uma lavagem que pega um órgão de um suíno recém-abatido e circula um fluido orgânico, que é como um detergente orgânico, por dentro do órgão. Temos então um órgão indefinido, neutro. No segundo processo, a recelularização, pegamos material do próprio paciente e colocamos no órgão para que ele se torne o órgão do próprio paciente. Daí você tem a "fórmula mágica" para criar órgãos.

OP - Apesar dos avanços na área médica, segundo o Registro Brasileiro de Transplantes, cerca de 36,5 mil pessoas lutam pela vida e estão na fila de espera por um órgão. Quais contribuições podemos esperar da bioengenharia?

Andreas Kaasi - Para os casos graves e sem potencial de melhora espontânea com os métodos existentes, a aplicação da bioengenharia é uma chance de vida por métodos alternativos. Esses pacientes poderão se candidatar a estudos clínicos experimentais e ter bons resultados. O investimento é grande, são riscos que se corre, mas muitos já sentem que não têm o que perder. Eu acho que os biorretores, a bioimpressão 3D e a biofabricação no geral representam uma lufada de ar fresco para a nossa necessidade de atender aos milhares de pessoas que aguardam por um órgão. Com mais pesquisa, mais desenvolvimento, mais inovação e empreendedorismo usando essas ferramentas e alavancando o que já existe é possível chegar a um novo paradigma. Acredito que daqui a 100 anos, os pesquisadores vão olhar para a história e reconhecer que estamos operando uma mudança para o melhor.

OP - Nessa perspectiva, estamos a quantos anos de poder utilizar essas técnicas com maior frequência nos procedimentos médicos?

Andreas Kaasi - Depende do tecido e do órgão em questão. Quando se trata de um rim, que pode ser considerado factível de se conseguir em um curto prazo, estamos falando de oito a dez anos. Para alguns tecidos menos complexos, a córnea é um exemplo, podemos falar de um prazo menor, e um órgão mais complexo, como o coração, talvez leve mais tempo, mas isso não é desanimador. Temos avanços significativos na área. Um empresa italiana conseguiu ainda em 2015 a aprovação na Europa de um tecido da córnea bioproduzido para tratar uma doença rara causada por queimaduras nos olhos. Outro exemplo é uma bexiga feita por meio da engenharia de tecidos e implantada de forma bem sucedida nos Estados Unidos; lá também já estão caminhando para esse produto ser autorizado no mercado. As biomebranas de colágeno biofabricado também já são uma realidade para a medicina regenerativa. Estes novos produtos à base de colágeno, além de comercializados como matéria-prima, podem ser utilizados como base para produção de tecidos biológicos vivos para estudos pré-clínicos minimizando o uso de animais, principalmente para indústria de cosméticos. Além disso o uso veterinário também está se desenvolvendo. Tudo depende da força de vontade, do investimento e do comprometimento dos grupos de interesse envolvidos.

OP - Até lá, quais os principais desafios a serem enfrentados pelos pesquisadores e pela sociedade?

Andreas Kaasi - Tem um desafio que tem a ver com o escalonamento da obtenção de células com a qualidade e a quantidade necessária. A técnica de cultura de células mais manual e tradicional que temos hoje é ineficiente. Para um rim são necessárias de 60 a 80 bilhões de células e conseguimos mil vezes menos e de forma muito trabalhosa. Uma saída é a automação. Os métodos de biorreatores também estão em estado de otimização, mas isso depende das empresas e da adoção em larga escala pelos centros de pesquisa. Então este é um desafio tecnológico e também político-acadêmico. No aspecto ético, as discussões também avançam. A utilização dos órgãos de porco não passam por um desafio significativo porque não somos nós quem abatemos. Os corações, rins e fígados vêm de matadouros que são parceiros, já que tais órgãos têm pouco valor agregado para fins alimentícios, mas são de grande valor para a Ciência. Sobre a produção de tecidos e órgãos em laboratório, os parâmetros éticos estão alinhados com os mesmo adotados pelas terapias celulares já aprovadas, a diferença é que desejamos fazer algo maior: juntar as células para fazer tecido. Seria uma inovação incremental de uma legislação já em vigor.

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