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Distanciamento social. A natureza agradece
Ciência e Saúde

Distanciamento social. A natureza agradece

Em Fortaleza, queda na poluição atmosférica chega a 50%. Outras capitais do País também registram ar mais limpo e menos ruídos
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India em 09 de abril de 2020, Com menos poluicao por conta do isolamento social, India viu os Himalaias pela primeira vez apos 30 anos. (Foto Reproducao/Twitter) (Foto: Reproducao)
Foto: Reproducao India em 09 de abril de 2020, Com menos poluicao por conta do isolamento social, India viu os Himalaias pela primeira vez apos 30 anos. (Foto Reproducao/Twitter)

Ao mesmo tempo em que a Covid-19 é reflexo da degradação da natureza causada pelas atividades humanas, ações para conter a dispersão do coronavírus têm resultado em efeitos positivos para o meio ambiente. Os bloqueios desencadeados pela pandemia, com cerca de 2,6 bilhões de pessoas vivendo sob restrições, estão demonstrando impacto positivo para o planeta. "A redução da poluição do ar chama a atenção, pois a atmosfera responde muito rápido à redução da queima de combustíveis, principalmente, associada à circulação de veículos motorizados", pontua David Tsai, coordenador da área de Emissões do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema).

Tsai explica que as atividades de transporte são as principais causadoras da poluição do ar. Um estudo divulgado pelo Google aponta o Ceará como o quinto estado do Brasil que mais reduziu a movimentação de pessoas no período entre 16 de fevereiro a 29 de março de 2020. Entre as unidades federativas do Nordeste, o Estado aparece em terceiro lugar.

"Talvez a população possa perceber subjetivamente as mudanças na qualidade do ar notando maior transparência da atmosfera e menos odores. No entanto, não é ainda possível observar essas mudanças cientificamente a partir de dados objetivos sistematizados", ressalva o pesquisador. Entre os 27 estados brasileiros, apenas dez contam com algum tipo de monitoramento oficial da qualidade do ar.

Em Fortaleza, um laboratório da Universidade Estadual do Ceará (Uece) está medindo as concentrações de ozônio (O3) nos arredores do campus do Itaperi. "Monitoramos a qualidade do ar da Capital, em parceria com o Instituto Federal do Ceará (IFCE), desde 2014. Com a pandemia, já tínhamos deixado as atividades na Universidade. Mas pensamos: 'Como realmente estará a qualidade do ar? Sabemos que vai melhorar, mas de quanto será essa melhora?'", explica Mona Lisa Moura, coordenadora do Laboratório de Conversão Energética e Emissões Atmosféricas (Laceema).

O ozônio foi o indicador escolhido por se tratar de um gás secundário formado a partir de reações fotoquímicas entre outros poluentes como os óxidos de nitrogênio, hidrocarbonetos, monóxido de carbono e material particulado. "Diferente daquele da camada de ozônio na estratosfera, o ozônio troposférico é altamente prejudicial. Ele é oxidante, maléfico para a vegetação e para o sistema respiratório humano", ensina Mona Lisa.

O estudo teve início em 2 de abril na Capital. Uma semana depois, as medições hora a hora constataram uma queda média de 50% na concentração do poluente. "No período entre 10h e 13h, quando há maior incidência solar e maior produção de poluentes, estamos observando uma diminuição significativa do ozônio, comparado a 2018 e 2019. No último ano, as medições apontaram até 50 partes por bilhão (unidade de medição para este tipo de análise), agora não ultrapassam os 25 ppb e caem diariamente", ressalta a coordenadora.

Ela destaca ainda que as medições são cruzadas com dados meteorológicos, como precipitações, o índice de insolação, a presença e velocidade dos ventos, a fim de estimar a dispersão desse poluente. "Isso porque o ozônio tem uma vida útil considerável e pode percorrer até 800 km a partir do ponto em que foi gerado. O ozônio produzido na região do Itaperi pode abranger Fortaleza e chegar ao interior." A pesquisa, realizada entre os Laboratórios Associados de Inovação e Sustentabilidade (Lais) da Uece e a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, deve seguir durante todo o ano e aferir também os impactos da situação atmosférica na saúde humana.

Ao mesmo tempo, os índices fornecem indicativos da aceitação e respeito ao distanciamento social. "É uma questão de utilidade pública. Uma documentação não só acadêmica, mas também para a população e para o poder público", afirma Mona Lisa.

Efeitos semelhantes estão sendo observados em outras capitais do País. A Região Metropolitana do Rio de Janeiro teve uma redução na presença de dióxido de nitrogênio (NO2), outro poluente gerado pelo trânsito e pelas fábricas. Um levantamento do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) apontou queda de 77% na concentração do NO2 no Distrito Industrial de Santa Cruz entre 23 e 25 de março, comparado aos índices do período anterior ao distanciamento. Em Duque de Caxias, a melhora foi de 45%.

A presença de dióxido de nitrogênio também foi notada pelo satélite Sentinel 5P, da Agência Espacial Europeia. Entre 20 de março e 8 de abril, manchas do composto químico nas regiões metropolitanas do Rio, São Paulo, Curitiba e Belo Horizonte estão menores em relação ao mesmo período de 2019. São Paulo tem ainda outra alteração: a queda nos ruídos. Segundo Associação Brasileira de Qualidade Acústica (ProAcústica), locais como a avenida Paulista registram até dez decibéis a menos do que de costume.

 

Transformação de hábitos é necessária para manter os benefícios

Na medida em que os casos de Covid-19 aumentam exponencialmente em todo o mundo, as ações de isolamento para impedir a disseminação do vírus reduzem a cada dia os níveis de poluição nas cidades. Embora os efeitos positivos sejam celebrados, sua permanência é incerta. Especialistas afirmam que o impacto total do vírus nas mudanças climáticas será determinado pelas medidas adotadas pela sociedade e pelos governos no mundo pós-pandemia.

"Infelizmente, os efeitos positivos tendem a desaparecer com o passar do tempo", opina Paulo Artaxo, professor do Departamento de Física Aplicada do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP). Para ele, que trabalha com física aplicada a problemas ambientais, atuando principalmente nas questões de mudanças climáticas globais, as desigualdades sociais e a superexploração dos recursos naturais do planeta que levaram à pandemia não mudaram nem mudarão "nos próximos seis meses ou dentro de alguns anos".

Momentos recentes da história embasam a opinião de Artaxo. Após a crise financeira de 2008, as medidas de estímulo intensivo em energia que se seguiram, particularmente na China, aumentaram as emissões poluentes. Desde então, a noção predominante tem sido a de que as preocupações ambientais saem pela janela diante de um choque econômico. Na atualidade, acordos e conferências internacionais sobre o clima estão suspensos, uma vez que as atenções estão voltadas à pandemia.

Ao mesmo tempo, o professor acredita que a Covid-19 trouxe "uma série de lições para a sociedade". "Uma delas é de que a hiperocupação do espaço de ecossistemas naturais vai trazer outros vírus e as pandemias podem vir a se repetir frequentemente. Então temos que estruturar uma maneira de preservar o funcionamento dos ecossistemas naturais." Mona Lisa Moura, coordenadora do Laceema da Uece, concorda com o pesquisador. "O isolamento acende uma luz indicando para a possibilidade de hábitos sustentáveis e nossas habilidades de nos adaptarmos a mudanças", afirma.

A professora enfatiza as possibilidades de transformar a mobilidade urbana e os hábitos de transporte. "Por exemplo, 89% ou mais da frota de Fortaleza são veículos flex e podemos escolher por utilizar o álcool, que polui menos. Ou então utilizar bicicletas ou veículos elétricos", afirma. Ela lembra que é preciso olhar para além dos combustíveis fósseis e dos poluentes atmosféricos. "Nós precisamos reaproveitar os recursos naturais ao máximo, reduzir a poluição e aumentar a eficiência do sistema."

David Tsai, do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), traz ainda a questão dos gases de efeito estufa (GEEs), cujas fontes coincidem em grande parte com aquelas dos gases e partículas poluentes. "Ao contrário dos poluentes atmosféricos, os GEEs têm tempo de vida na atmosfera, da ordem de meses e anos. Assim, uma alteração momentânea na emissão não causa uma alteração imediata nas concentrações", explica. "Vale lembrar também que deve-se buscar boa qualidade do ar de modo sustentado nas cidades. Breves intervalos de ar limpo serão sempre bem-vindos, mas, além dos episódios agudos de doenças, poluição do ar gera efeitos crônicos à saúde."

Na opinião de Tsai aspectos ecológicos serão considerados "para 'reconstruir melhor' o modo de vida da sociedade". Ele acredita que movimentos defensores de causas diretamente afetadas pela pandemia, como a defesa pelo ar limpo, pela redução de desigualdades sociais e por um sistema de saúde mais eficaz, ganharão força. "Por enquanto, não há ações sendo levadas a cabo que mostrem que essas transformações permanecerão. Ainda estamos no estágio de enfrentar a crise." (Marcela Tosi)

Sinais de quietude na Terra em meio à pandemia

A diminuição da interferência humana tende a ajudar na recuperação ambiental, da qualidade do ar ao habitat de animais silvestres e urbanos. Confira algumas mudanças que o distanciamento social e a contenção comunitária trouxeram à natureza:

Redução nos gases de efeito estufa | Segundo registros de satélites da Nasa, a concentração de dióxido de nitrogênio (NO2) e outros gases poluentes caiu drasticamente em Wuhan, epicentro da pandemia de Covid-19, e em outras regiões da China. De vermelho e laranja, o mapa ficou azul. O mesmo fenômeno foi registrado pela Agência Espacial Europeia em grandes centros como Teerã, Nova Déli, Milão, Madrid, Londres, Los Angeles e Moscou.

Queda na poluição atmosférica | Com fechamento de indústrias e comércios e circulação controlada pelo governo local, indianos passaram a ter uma vista mais nítida do Himalaia. Moradores de cidades no norte do país publicaram fotos da maior cadeia montanhosa do mundo, relatando que a visão não era possível há décadas pois nuvens escuras que encobriam a cordilheira.

6 milhões de carros fora das ruas | Uma análise do jornal Financial Times sobre viagens aéreas aponta que em março as emissões de gás carbônico das companhias aéreas caíram 31%. São cerca de 28 milhões de toneladas de CO2, o equivalente a tirar 6 milhões de carros das ruas por um ano. Essa queda deve se tornar ainda mais acentuada. O tráfego aéreo global ficou 65% abaixo dos níveis pré-pandemia no início de abril, segundo a consultoria de dados de viagens OAG.

Vibrações diferentes | O planeta passou a vibrar menos pela pouca movimentação humana durante a quarentena, de acordo com um estudo divulgado na revista especializada em ciência Nature. O fenômeno foi apontado pelo Observatório Real da Bélgica, em Bruxelas, que registrou uma queda de 30% nos ruídos. Em todo o mundo, sismólogos têm detectado menos ruído sísmico, isto é, vibrações geradas por automóveis, maquinário industrial e até pela alta circulação de pessoas.

Água límpida | No início de março os canais de Veneza, na Itália, voltaram a ter água clara. Nas redes sociais, moradores comemoraram e relataram a aparição de peixes. Em entrevista para a o canal norte-americano CNN, a prefeitura da cidade afirmou que isso aconteceu devido à diminuição do movimento dos barcos que, ao transportar pessoas, agitam os sedimentos e os trazem para a camada mais superficial. Não houve exatamente uma limpeza das águas, mas uma mudança de sua aparência devido à deposição dos sedimentos.

Fauna nos grandes centros | Um grupo de veados saiu do Parque Nara, no Japão, e apareceu circulando pelas ruas da cidade de mesmo nome. Na Itália, ovelhas e javalis foram fotografados caminhando tranquilamente pelas ruas vazias. Já na Tailândia, os macacos, sem turistas para alimentá-los, dominaram as ruas à procura de comida. Outros casos surgiram nas redes sociais, mas nem todos foram confirmados e alguns eram falsos. O fato é que, com a reclusão humana, animais silvestres passaram a ocupar espaços urbanos.

 

Perigos da poluição atmosférica

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a poluição do ar das cidades ocasiona a morte de 3,7 milhões de pessoas por ano em todo o mundo. As partículas inaláveis finas, cujo diâmetro é mais fino que um fio de cabelo, podem atingir os alvéolos pulmonares e aumentar o risco de desenvolver doenças cardíacas e respiratórias. Assim, elas reduzem a expectativa de vida em quase três anos, segundo um estudo publicado pela revista Cardiovascular Research, da Universidade de Oxford.

Consciência ambiental

O dia 22 de abril marca o Dia Internacional da Terra. Instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2009, a data incentiva governos, organizações não-governamentais, instituições e sociedade civil a desenvolverem consciência sobre a importância de preservação do meio ambiente.

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