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Talvez o vinho de dona pipi
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Talvez o vinho de dona pipi

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Meu primeiro impulso, no momento em que estou escrevendo este texto, é tanger de cipó 2017. Teria motivo. Uma tina de lamúrias.

Qualquer brasileiro teria e todo fortalezense, mais ainda. Os cearenses, aos tantos.

A seca... O Temer como síntese do que a Política nunca deve ser ... A cidade cheia de lixo... A violenta ameaça de destruição das dunas do Cocó e da Sabiaguaba... O rosário de cada um.

Sim, fui assaltado com um revólver na cara há um ano e vivi 2017 me esquivando de outros constrangimentos nas esquinas. O risco que virou rotina. Ser assassinado por falta de segurança social na aldeia além da Aldeota.

E muita gente bacana, que tem alguma condição e não vive o terror de morar num bairro onde passaram a cortar cabeças, foi embora para Portugal e não quer mais volver...

Inventou um mestrado, um doutorado ou quis, mesmo, ir andar tranquilo nas ruas de Lisboa ou coisa assim parecido com Óbidos.

Criar os filhos na paz. Está no jogo, mas ainda não me dei por vencido...

Farei assim, permitam-me. Vou deixar o olhar mais inquieto pela Cidade coletiva para 2018. Retomo-o daqui a pouco, ancorado no jornalismo ou na simples condição de cidadão parido, com muito afeto, aqui.

Hoje, quero a sintonia de dona Pipi para alinhavar o que espero dos anos que vêm. Aos 90, ela fresca com a vida em Fortaleza. Não é que todos os dias dela tenham sempre gosto de arroz de cuxá. Não.

Quem completa nove décadas já viveu também dias em que a peixeira acerta o féu e o amargor arruína a arabaiana. Mas não vejo dona Pipi regurgitar, toda hora, os anos que entraram e saíram. Do tempo que a conheço é mais melaço do que azedume.


Até quando fica deprimida, parece, tem uma graça. Num tempo desse, quando tinha um pouco mais de 80, ficou assustada porque achou um disparate ter de passar a frequentar o geriatra. Mas talvez aí, o segredo.

Os anos se passaram e ela não deu muita trela para o envelhecimento. Sim, o corpo aos 90 é só saudades. Do marido que se foi aos filhos que cresceram e foram indo, menos Solange, sua melhor amiga.

Dona Pipi pode até ser uma grande fingidora, deixar para os de fora a imagem de que a vida segue boa e não ser bem assim quando as visitas se vão. Mas penso que não. Vive rindo, conta piadas, homenageia memórias.

E no mais, adora tomar uns copos. Um vinho que não a derrota, mesmo que enxugue bem umas garrafas. Não é a uva que a deixa prazerosa e alegre carnaval. É dela mesmo, talvez a água gelada da bilha que bebeu quando criança no Croatá do Maranhão.

Fui gentilmente convidado para os 90 anos de quem nasceu em 1927. Dona Piedade estava feliz pela cruzada e cheia de perna com a récua de gente lhe paparicando. Dançou carimbó. Desejo que dance os anos que ela quiser ter.

Acho corajoso da parte de dona Pipi (sou meio frouxo quando penso nisso) quem não tem medo dos 90, dos 100, dos 103... Muitas felicidades e um 2018 com o gosto do cozido de Jurará.


DEMITRI TÚLIO é repórter especial e cronista do O POVO demitri@opovo.com.br 

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