Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
[FOTO1] As chuvas sempre chegaram diferentes para o povo lá de casa. Para a maioria era algo que não sei dizer. Mesmo com as goteiras e um dia de panelas, bacias e baldes espalhados no mosaico, havia regalo no meladeiro.
Sim, as roupas enxovalhadas no quarador fediam a rabujo de cachorro porque o sol passava dias ausente. O galinheiro restava um horror e a inundação no quintal cobria a cacimba e estourava a fossa. Surgiam cobras, cururus, cachorros d´água e emboás.
Mas não se maldizia de um sereno, um chuvisco ou temporal. As goiabas, depois dali, inchavam mais achabocadas, os coqueiros se enchiam d´água doce, muita cajarana e um mato que meu avô não dava conta capinar na invernada.
Mosquitos cu de cachorro vinham, também, às nuvens. Frieiras, curubas, dordói, catarros no peito, fungados e escorridos... Verdade. Porém, a gratidão pelas águas passava por cima de qualquer dor de barriga. Havia também sacis e vagalumes.
Pirilampo, talvez, seja a saudade mais doída de não ver pela Cidade que não se cabe mais. Comecinho das 6 horas, hora do Anjo. Piscando acima do capim que margeava o oitão e o meio fio.
E os fazíamos prisioneiros em caixas de fósforos e vidros invisíveis.
Uma experiência de infância e a vontade de descobrir como eram luzes sem pilha de rádio ou válvula de televisão. De uma inocência ainda. [QUOTE1] Pois soube, depois que a gente passa a entender o silêncio, que minha bisavó e algumas mulheres da família não tiveram grandes amores. Mesmo casadas. Homens que lhe fossem outros no feitio do rebuçado. Embora tivessem sido avôs, bisavôs e filhos legais para a Rua, não eram lá essas coisas de amantes na camarinha.
Para além de engravidar seis, 12 vezes, não tinha história de gozo.
Um bucho atrás do outro e se conformar com o instinto do esposo.
Em cima delas, sem direito a se expandir porque poderia ser despudor. Apenas testemunhavam a pressa e a retirada feito uns bois.
Claro que os mais antigos nunca falariam a um neto. À criança alguma era dado o perigo de ouvir o que não deveria. Mas não há segredo, em família, que não estoure numa hora ou conversa atalhada em porta de travessa.
Minha bisavó ficava num pé e noutro quando o inverno prometia chegar. Ouvi escondido sobre histórias recontadas. Ela mudava de pessoa, não suportava meu bisavô chegar a um trisco de seu corpo.
Minha avó da mesma forma. Mamãe também, tenho desconfianças.
Mas ainda chora, 30 anos depois, a separação de um corpo que pode não ter lhe feito tanto bem. Pretensão minha dizer por ela.
Gozo de mamãe, herdado das outras, era a chuva chegar cutucando forte as telhas no toró. Abrindo virilhas de cumeeiras, entrando na calha, enchendo as tinas no pano de coar. Derramando-se por todo canto. Tinha prazer além da escrita.
E recordo, no inverno bom, alguém berrar no quarto, enquanto chovia toró, um verso de dom Casaldáglia. E entre Evangelho e canção/ Sofro e digo o que quero /Se escandalizo primeiro / Queimei o próprio coração ao fogo desta Paixão / Cruz de seu mesmo Madeiro. Urrava...
Não era penitência nem culpa... Era desfrute trazido pelas chuvas.
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