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Nus, descalços e buchudos
Foto de Demitri Túlio
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Nus, descalços e buchudos

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Não sei por que estive me lembrando de quem passava por perrengues no Porangabuçu. Lá em casa havia pindaíbas, principalmente nos quinze dias finais do mês. Muitos filhos, uma tribo com uma bisavó, um avô e uma avó.

E os mais velhos salvavam os dias com as pensões ou aposentadoria contadas. Seguravam a onda do filho, da nora e dos miúdos que iam rebentando em anos encarrilhados.

Parece que sempre será assim. Não era para ser. Haverá avôs e avós que socorrerão os filhos que tiveram rebentos demais ou se casaram além da conta e não seguram a onda. Família: só a conhece, de verdade, quem convive da porta para dentro.

Lá em casa tem dessa herança avoenga, mas havia famílias mais precisadas ainda. Na mesma rua, história de necessidade esticada.

Uma delas, eu ficava olhando aquilo sem ainda compreender o Brasil.

Minha compreensão de País ainda era mais insignificante. Numa dessas tribos, os filhos de dona Senhora sempre andavam descalços e quase nus. Quase nus porque até uma certa idade vestiam apenas panos que simulavam calcinhas e cuecas. E não eram afeitos aos chinelos. Quando tinham, andavam mais com os pés no chão do que calçados.

Coisa que mamãe nos enlouquecia se os pés não estivessem calçados. Talvez porque a casa era de quintal, havia uma fossa, se criava bichos e havia regos. Os micróbios assustavam mais ela do que nós. Imagine aquele bando de menino doente? Acontecia.

Pois a família de dona Senhora, parte nasceu com o cabelo ruivo e era apelidada de “cabelos de fogo”, tinha menos do que a gente. As meninas e os meninos andavam quase índios.

Lembro, perto das festas de final de ano, quando lá em casa se fazia crediário para compra de fazendas baratas e costura da única roupa nova do Natal e Ano Novo. Na casa deles não era assim.

E sapatos, aí que a história envergava. Eles até vestiam uma blusinha de botões e um calção ou uma calça pegando siri. Porém calçavam chinelos nas festas. Ainda tínhamos os sapatos para ocasiões tais, guardados em caixas dormidas debaixo da cama.


Sapatos não para gastá-los no dia a dia, na baia. O problema é que de tanto se guardar terminavam apertados nos pés crescidos. Como eram muitos irmãos eram passados para o mais novo.

A família dos cabelos de fogo não luxava assim. Tinha outra coisa, os meninos e as meninas tinham buchos grandes e pele amarelada. E faltava o vermelho do sangue quando se arreavam as pálpebras. Era um bando de nus, descalços e buchudos.

Mamãe não descansava enquanto não recebesse os vidros de Complexo B e de remédios para verme no posto do Inamps. Um horror ter medo delas saindo pelo nariz e fiofó. Depois, ainda na infância, inventaram uma fórmula que destruíam as bichas nas próprias vísceras.

A vida muda só para uns. Ando bem mais calçado hoje do que quando menino. Tenho mais roupas e, muitas vezes, eles se perdem no guarda-roupa esperando outros donos. Não sei como está hoje a família dos “cabelos de fogo”. Se os filhos deles têm sapatos, se ainda andam quase nus no meu País... 

Foto do Demitri Túlio

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