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A leveza
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

A leveza


Ser leve é uma decisão que tomei em um dia de sol manso ou em uma noite de lua cheia, não lembro muito bem. Decidi assim porque as coisas mais bonitas da natureza são exatamente as que flutuam. O beija-flor, por exemplo, sabe voar e suspender o corpo em um beijo. O senhor apaixonado do quadro Aniversário, de Marc Chagall, faz exatamente a mesma coisa. Imita a aerodinâmica dos pássaros enquanto entrega flores à sua amada aniversariante. O espaço ao redor parece invadido de alegria, é assim que acontece quando se permite que a vida seja tomada nos braços pela leveza.

 

Peixes também são leves, atravessam a água de um jeito tão lindo que comove. Nadar é um espetáculo de paz e silêncio que nenhum corpo deveria dispensar. É uma das maneiras de sentir a própria alma. A outra seria voar, mas enquanto não é possível para nós, pobres humanos, usemos dos métodos metafóricos para subir aos céus. Temos a música, por exemplo. Frank Sinatra ensina a alcançar a lua na canção Fly me to the moon, é só prestar bem atenção. Pouca gente sabe, mas o manual da felicidade está escondido na poesia.

 

Sou uma discípula fiel de Italo Calvino. A última coisa que ele escreveu em vida foi uma tentativa de antecipar e nos preparar para os desafios do milênio que estava por vir - este que vivemos agora, despreparados, estupefatos, tanto imersos no assombro, quanto tontos de encantamento. Das suas seis propostas para o próximo milênio, ele só escreveu cinco. Minha preferida é a que versa sobre a Leveza, este bem que me é tão caro.

 

Calvino escreveu que às vezes o mundo inteiro parecia transformado em pedra. Mais ou menos avançada segundo as pessoas e os lugares, essa lenta petrificação não poupava nenhum aspecto da vida. Como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa.

 

É usando o mito da mais temível Górgona que ele nos apresenta um caminho para enfrentar a opacidade das pedras, o peso da vida, a brutalidade das coisas e das pessoas. Quem derrotou Medusa, a terrível mulher com cobras na cabeça e olhar que petrificava para sempre, foi Perseu. Usou o recurso da invisibilidade, do escudo refletor e das sandálias aladas de Hermes. Os mitos continuam ensinando a viver. É urgente ser invisível para quem não nos faz bem, olhar a vida pelo reflexo certo e voar quando necessário.

 

Gosto especialmente do trecho em que Calvino disse que cada vez que o reino do humano parece condenado ao peso, ele decidia viver à maneira de Perseu e voar para outro espaço. Mudar o ponto de observação. Considerar o mundo sob uma outra lógica, outra ótica. Preencher a vida com a dose máxima possível de sonho.

 

Calçar as sandálias de Perseu é uma necessidade cada dia mais urgente, as medusas estão espalhadas por todos os lados. Sorte de quem ainda consegue encontrar um par que caiba nos seus pés. Quando a vida é generosa, as sandálias aparecem onde menos se espera. Virar pedra para sempre ou flutuar como um beija-flor é uma questão de decisão - em dia de sol manso ou em noite de lua cheia.

 

Foto do Socorro Acioli

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