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Histórias de homicídios na infância
Cotidiano

Histórias de homicídios na infância

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PARQUE DOIS IRMÃOS.


O sofrimento em um lar de extrema vulnerabilidade social


Concebida em um lar de extrema vulnerabilidade social, a menina, de 2 anos, não resistiu às múltiplas lesões e traumatismo craniano atestados em laudo expedido pela Perícia Forense do Ceará (Pefoce). Filha de um casal à época adolescente, a menina teria sido vítima da brutalidade do próprio padrasto, que tem hoje 18 anos.


Conforme inquérito, que continua em aberto na Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), o suspeito, então com 17 anos, costumava agredir a enteada com frequência. Rotina de violência doméstica que se estendia à mãe da garota, também adolescente. Até que, no dia 15 de julho, a menina não resistiu a mais uma das investidas do jovem, que era dependente químico.


O caso se deu na comunidade da Rosalina, no bairro Parque Dois Irmãos, em Fortaleza. “A mãe teria saído para comprar pão e, quando voltou, encontrou a filha com marcas de agressões graves. A situação era de total abandono familiar. A mãe não tinha nem documentos. Apresentou uma certidão de batistério aqui na delegacia”, detalha a delegada Arlete Silva, recém-empossada na DCA.


A criança foi então levada para a unidade de Pronto Atendimento (UPA), mas não resistiu aos ferimentos.Encaminhada para a Pefoce, além dos traumas, laudos inconclusivos do corpo da criança indicam possível abuso sexual e intoxicação.


Um mandado de apreensão foi expedido, mas o padrasto da menina não foi localizado até hoje. Conforme a Direção da 5ª Vara da Infância e Juventude, ele poderá responder pelo ato infracional análogo à lesão corporal seguida de morte, mesmo sendo adulto, até os 21 anos. Uma investigação também foi aberta na Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente (Dececa), já que a vítima era criança.


A delegada Arlete Silva informou que o caso terá tratamento prioritário. O POVO não identifica os pais da criança em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Apesar do pai da menina hoje ser adulto, quando cometeu o crime, ele ainda era adolescente. Ele não tem mandados posteriores ao fato. O nome da menina foi suprimido para que o pai, e também a mãe, não sejam identificados indiretamente.


TRAIRI.


A tragédia familiar e o risco da negação de uma mãe


A expressão “tragédia familiar” pode até resumir, de maneira simplória, o único homicídio praticado na cidade de Trairi, no Litoral Oeste do Ceará, em janeiro de 2016. Mas não abrange o contexto de desconhecimento e negação que aflige a família que foi atingida pela perda do menino de 7 anos, que morava em localidade distante da sede da Cidade.


Conforme testemunhas, que pediram para não serem identificadas, na ocasião do crime, o menino foi deixado em casa, sob os cuidados do irmão mais velho, à época com 15 anos, enquanto a família foi a um velório, em Paracuru. Horas depois, o jovem chegou à casa de parentes, na sede da Cidade, dizendo que o irmão havia sido morto a golpes de facão.


“Ele contou que uma pessoa encapuzada tinha matado o irmão. Que tinha agredido eles. Que estava em choque. Mas as pessoas desconfiaram e avisaram à Polícia Civil. Depois de apresentar várias versões, o jovem confessou o crime. Disse que obedeceu às vozes que ouvia”, contou uma das pessoas ouvidas pelo O POVO.


Apreendido, o adolescente foi encaminhado à Fortaleza, onde cumpriu medida socioeducativa por sete meses, até que foi liberado para ser acompanhado em Trairi. Diagnosticado com um transtorno desconhecido pelos familiares próximos, mudou-se de cidade, com os pais, e teria interrompido o tratamento. Algumas pessoas disseram que jovem também seria usuário de drogas. “Sabe-se que ele tem problemas com crianças”, disse outra pessoa próxima da família.


Testemunhas dizem que a mãe dos meninos não acredita que o jovem tenha transtornos mentais e atribui o assassinato a fatos “sobrenaturais”. Durante uma semana, O POVO tentou ouvir a família. Parentes próximos se recusam a falar sobre o caso. Já a mãe dos garotos não atendeu às chamadas no celular.


“O pior de tudo é isso: a mãe não aceita essa situação (psiquiátrica) do filho. E realmente é difícil acreditar. Eles eram uma família íntegra, normal. Eram unidos e alegres. Aquele foi um dia muito triste. Uma tragédia que ninguém esperava”, contou uma testemunha. Conforme recomenda o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), O POVO não identifica o nome da vítima para evitar que o irmão dele, ainda adolescente, seja indiretamente identificado.


ITAITINGA.


A luta de Rakelly pela sobrevivência e o desmoronar de duas famílias


“Minha família foi completamente desestruturada. Nossa vida jamais será a mesma”. A fala é da garçonete Patrícia Alves Pereira, 26, mãe de Rakelly Matias Alves, de 8 anos, cujo assassinato, em 21 de setembro, causou grande comoção aos moradores de Itaitinga, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). Dentre os homicídios de crianças em 2016, o caso de Rakelly foi o que mais repercutiu no Estado.


A menina foi cruelmente assassinada pelo caseiro José Leonardo de Vasconcelos Graciano, 33, o Zé, que confessou o crime e foi indiciado pela Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) e denunciado pelo Ministério Público do Ceará (MP-CE). Conforme as investigações, a menina foi atacada quando foi ao sítio onde o acusado trabalhava, para brincar com o filho dele, de 11 anos.


No local, havia dois imóveis. Um deles era a residência do caseiro, onde ele vivia com a esposa e o filho, que estavam deitados, após o almoço, e não perceberam a ação.

No outro, a casa sede, Leonardo estava sentado à varanda. Rakelly chegou e perguntou pelo filho do acusado. Foi quando ele a segurou e enforcou.


O próprio José contou que Rakelly tentou se desvencilhar. Enquanto era asfixiada, mordeu os dedos polegares do caseiro. As marcas da luta pela sobrevivência, cinco dias após o episódio, eram visíveis nas mãos do homem. Mas a menina desmaiou. Rakelly foi então vítima de violência sexual. Amordaçada e amarrada, a menina foi estrangulada e jogada em uma cacimba.


Os dias que se seguiram resumiram a desestruturação de duas famílias: a de Rakelly e também a do caseiro, cujos familiares não tiveram participação no crime, mas também foram atingidos. A casa onde os parentes de José moravam, bem como a sede do sítio, foram completamente destruídas por vizinhos, que ficaram revoltados com a situação.


José está preso. O processo contra ele está em fase de instrução. “Minha mãe, de 58 anos, foi embora para Fortaleza. Nossa família se desmantelou. Estou no mesmo canto porque não tenho pra onde ir. Está sendo muito difícil. A saudade é grande”, resume Patrícia.


SOBRAL.


Barbaridade, torpeza e devastação no lar de Vitória


O choro da pequena Vitória Glória Tavares Rocha, de 1 ano e 2 meses, foi suficiente para desencadear uma reação de brutalidade que não se explica. Por horas longe da mãe, que estava hospitalizada após o parto prematuro do segundo filho, nascido no oitavo mês, a menina chorava copiosamente. Motivo pelo qual foi violentamente espancada pelo padrasto, responsável por ficar com a criança naquela noite de 7 de março.


O caso foi registrado no bairro Terrenos Novos, na periferia de Sobral, a 250 km de Fortaleza, na Região Norte do Estado. Horas após a agressão, Antônio Erimar Doreteu Rocha, 20, chegou ao Hospital Regional do Município. Carregava Vitória enrolada em lençol. Dizia que a criança havia caído da cama e estava desacordada. Os profissionais, porém, desconfiaram das marcas arroxeadas no corpo da menina, conforme a Polícia Civil.


A Polícia Militar e o Conselho Tutelar foram chamados e Erimar foi preso em flagrante. Na delegacia, confessou o homicídio, alegando “incômodo” pelo choro de Vitória. Contou que agrediu Vitória, principalmente na região da nuca, até que ela parasse de chorar. O laudo cadavérico, porém, além do traumatismo craniano, atestou hematomas generalizados e marcas de sufocamento na boca da menina.


Sem antecedentes criminais, Erimar foi autuado por homicídio triplamente qualificado e encaminhado à Penitenciária Industrial Regional de Sobral (PIRS). Nesse intervalo, a residência da família foi completamente depredada por vizinhos revoltados.


Dois meses depois, Erimar foi executado a golpes de faca dentro do presídio e teve o corpo queimado. O autor do assassinato foi identificado e contou à Polícia Civil que havia sido obrigado a cometer o crime pelos outros detentos. O caso é investigado pela delegacia local.

O POVO tentou ouvir a família de Vitória, mas ninguém foi localizado.

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FRECHEIRINHA.


A tragédia de Davi e a família que tinha pouco dinheiro a entregar


No casebre simples, de parede e meia, a família de agricultores mantém uma bodega para abastecer com doces e salgadinhos as crianças que vão e voltam da escola, na pacata localidade de Vila Pavão, no município de Frecheirinha, a 305 km de Fortaleza, no Sertão de Sobral. Tranquilidade abalada no dia 27 de junho.


Era fim de tarde. Patriarca de cinco filhos, Manuel Alves Ferreira, 50, estava sentado no alpendre interior da casa. Segurava nos braços o pequeno Luís Davi Sousa Ferreira, de 1 ano e sete meses. Mãe das crianças, Maria Sousa Ferreira, 43, catava uma bacia de feijão na cozinha. Coube ao filho de 17 anos tomar conta do comércio. Foi quando dois homens chegaram pedindo cigarros.


Eles entraram com capacete e,após o jovem informar que vendia apenas guloseimas, anunciaram o assalto. “Um puxou o revólver e botou na cabeça dele, mandando dar conta do dinheiro. Eu ouvi o barulho e entrei (na bodega). Aí eles disseram que era assalto. Eu me tremia inteira. Entregamos todo o dinheiro que a gente tinha, que era R$ 70. Mas eles queriam mais”, lembra Maria.


As ameaças continuaram. Mãe e filho foram levados para o quarto onde a família guarda os legumes que planta e colhe. Foi lá que a tragédia aconteceu. “Meu marido estava no terreiro, ouviu o barulho e entrou com o menino nos braços. Eles partiram pra cima dele, atirando. Acertaram quatro (tiros) nos braços dele. E... a gente não sabe como... mas um dos tiros acertou a cabeça do meu filho, atrás da orelhinha dele”, recorda a mãe, aos prantos.


Maria ainda tentou socorrer Davi. “Eu corria desesperada. Subi na moto de um vizinho e ele me levou pro hospital. Mas o meu filhinho não resistiu. Mesmo com toda saúde... Era tão sabido. Adorava danone! Todos os dias eu choro...É muito injusto alguém fazer uma covardia dessas com um inocente. Antes fosse eu! A gente já é pecador. Mas pra quê fazer isso com um inocente?”, questionava, inconformada.


O pai, Manuel, foi socorrido numa viatura da PM. Ficou internado por 11 dias e sobreviveu. A família ainda recebe ameaças. Dois suspeitos, que seriam de Tianguá, foram presos. Além de Davi e do adolescente de 17 anos, os demais filhos do casal têm 7, 13 e 24 anos. “A gente sempre foi feliz. Se programava. Tinha filhos a cada cinco anos. O mais velho vive em Rondônia. Nunca tinha visto o irmão. Viu depois de morto. Depois dessa tragédia”, lamenta Maria.

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BOM JARDIM.

O adeus de Denis no violento território da paz


Após a campainha anunciar o fim das aulas do turno da tarde, o grupo de crianças deixou a escola e rumou para o campinho no entroncamento entre a rua Naiane Batista e a travessa Maria Batista, no bairro Bom Jardim, em Fortaleza. Era fim de tarde de 14 junho. Entre os meninos que brincavam, estava Denis Iago da Silva Vieira, 8 anos, escolhido como alvo de uma demonstração de força e brutalidade em pleno território dito “da paz”.


As crianças foram surpreendidas por homens armados, que desceram do carro atirando. Buscavam atingir dois jovens, que também estavam no campo, próximo aos garotos. Os dois alvos foram baleados, mas sobreviveram. A principal linha de investigação da Polícia Civil aponta para disputa por território para o tráfico de drogas.


Os criminosos, porém, não miraram somente a dupla. Denis também foi executado no local. “Eles queriam matar os dois caras, mas atiraram no meu filho porque quiseram. Ele pediu pra não morrer três vezes. Atiraram também em outras crianças, mas não acertaram. Foi proposital”, afirma o pai do menino, Marcondes da Silva Vieira, 46, que trabalha como reciclador e assistiu a tudo da calçada de casa, impotente.


O tiro que atingiu Denis percorreu o tórax do menino e saiu pela virilha, afetando órgãos vitais. Considerado um garoto inteligente e que gostava de ajudar os amigos e jogar bola, Denis não resistiu. Os autores do crime fugiram e não foram identificados. A família, que morava em um casebre, mudou de bairro. Tentam aliviar o trauma sofrido pelo irmão único de Denis, que tem 10 anos.


“O fim de ano, dessa vez, foi uma tristeza só. Todos lembrando dele. Como é que alguém faz uma desgraça dessas com uma criança?”, questionava a mãe do menino, Valéria da Silva Vieira, 31, também recicladora. Mais conformado, o pai busca seguir em frente.


“Um pai, quando gosta de um filho, dificilmente aceita essa situação. Mas não fui atrás de nada. Estou cuidando do meu outro filho e sei que esse seria o desejo do Denis. Porque ele agora é um anjo. E anjos não gostam de vingança”, diz.


AQUIRAZ.


O tiro que atravessou o caminhar de Alice


Um tiro certeiro no peito dilacerou o coração miúdo da pequena Ana Alice Oliveira Castro, de 1 ano e 11 meses. Segunda filha de um casal de jovens, a criança foi morta no começo da noite do dia 2 de junho, na rua São João, na localidade de Novo Iguape, em Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF).


Alice era sapeca. Aprendeu a andar cedo. Costumava ir da sala para a calçada sempre que havia alguém do lado de fora, como fez naquela noite. “Eu vinha chegando do Centro e passei por lá. Ela correu pros meus braços. Pedi pra ela ir pra minha casa, mas o pai disse que ela ia tomar mingau e a levou pra dentro”, contou a avó da garota, Maria Luciana Oliveira de Jesus, 41, dona de casa.


Mas a menina saiu novamente. Desta vez, o pai dela conversava com o irmão, José Sousa de Alencar, 24, conhecido como Zé Pequeno, e Clailson Meneses da Silva, 18, amigo dos dois. Alice foi então colocada nos braços por Clailson. Foi quando dois jovens chegaram para um acerto de contas relacionado à disputa pelo tráfico de drogas na região, conforme investigação da Polícia Civil. Todos correram.


Lucas Menezes de Sousa, 22, e um adolescente (idade não informada), atiraram em Pequeno e Clailson. Os dois foram atingidos, mas sobreviveram. Um dos disparos, porém, também atingiu Alice, que não resistiu. Grávida e desesperada, a mãe da menina, Francisca Juliana Oliveira de Jesus, 26, apanhou Alice nos braços. Em vão, correu pela rua gritando por socorro.


“Todo mundo ficou revoltado. Foi uma injustiça muito grande. Mas sabemos que ela está num lugar melhor que nós”, confia a avó da menina. Depois do tiroteio, Lucas foi preso. Reconhecido por testemunhas, foi indiciado e denunciado por homicídio e tentativa de homicídio. Respondia por porte ilegal de arma, homicídio e tráfico de drogas. Atualmente preso, ainda aguarda julgamento.


Após ameaças, os pais da criança mudaram para Fortaleza. Temiam que o mesmo acontecesse com o outro filho, de oito anos. Segundo a avó das crianças, Juliana teve dificuldades no parto do terceiro filho, mas se recuperou. “Ficou com trauma por causa do homicídio. Mas minha neta nasceu. Inteirou um mês agora. Chama Maria Ester e é muito parecida com a Alice, a irmãzinha dela”, diz Luciana, buscando conforto.


RUSSAS.

Antigas intrigas familiares e o triste destino de Viviane

 

Entre as trágicas mortes violentas de crianças no Ceará, a história de Carla Viviane Jales Pinto, de 10 anos, chama atenção pela dificuldade no acesso às informações. Não que elas não existam. Poucos, porém, têm coragem de falar a respeito. É que o homicídio estaria relacionado ao peso de um sobrenome alheio.

 

A menina foi morta por volta das 20 horas, no dia 2 de outubro, durante carreata de candidatos que haviam vencido as eleições na cidade de Russas, na Região do Vale do Jaguaribe, a 160 km de Fortaleza. Viviane estava na calçada de casa, na travessa José Vieira, no Centro do Município.


Carla acompanhava a passagem dos carros quando foi atingida por um dos disparos efetuados em direção à sua tia, Francisca Amanda Diógenes Saldanha, 22, que comemorava a eleição de Raimundo Weber (PRB) para prefeito. As redes sociais da jovem ainda estão cheias de mensagens defendendo a então candidatura.


A Polícia Civil, entretanto, descartou a possibilidade de crime relacionado às eleições. “O alvo era a tia da garota. Os suspeitos utilizaram o artifício da carreata para chegar até ela. A Carla foi atingida indiretamente. Um tiro transfixou a tia dela e atingiu a menina no abdômen”, disse um policial da Cidade, que preferiu não se identificar. Ninguém foi preso.


A principal linha de investigação aponta para “intrigas familiares”. Rixa entre grupos que carregam sobrenomes associados a casos de pistolagem. Como se fossem hereditárias, as desavenças familiares ainda fazem vítimas pelo Interior do Estado.


Após o crime, a família de Carla se mudou. Durante uma semana, O POVO tentou localizar familiares ou amigos da jovem que aceitassem falar sobre ela. Ninguém quis. Algumas recomendaram que O POVO parasse de procurar. No perfil da menina, no Facebook, amigas e familiares lamentaram o homicídio. “Que triste, Jesus! Uma menina tão jovem, tão linda e cheia de vida ter partido dessa maneira”, comentou uma mulher.

 

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